domingo, 29 de novembro de 2009

Estar presente...



Confie no Coração

O caminho perfeito não conhece dificuldades ,

Mas se recusa a ter preferências;

Apenas quando é libertado do ódio e do amor

É que se revela totalmente, e sem disfarce.

Uma diferença de um décimo de centímetros,

E o céu e a terra são separados.

Se você deseja vê-lo diante dos seus olhos

Não tenha pensamentos fixos nem contra nem a favor.


Instigar aquilo de que você gosta contra aquilo de que você não gosta:

Essa é a dança da mente.

O Caminho é perfeito como a amplidão do espaço,

Sem nada a querer, sem nada supérfluo.

É devido às escolhas que faz

Que a sua Essência se perde de vista.


O Um não é nada além do Todo, o Todo nada além do Um.

Tome seu lugar e o resto se seguirá por si só.

Falei, mas foi em vão, pois o que podem dizer as palavras

Sobre as coisas que não têm ontem, amanhã ou hoje?


Seng Ts’an

(Extraído do livro “Budismo: Uma introdução Concisa – Huston Smith e Philip Novak)


Vivemos exatamente de forma contrária à última estrofe do poema acima. Queremos compreender tudo pelo intelecto, e para isso a mente-ego necessita de definições. No entanto, para vivenciarmos a resposta da pergunta que move a humanidade “Quem sou eu?” precisamos buscar o vazio.

A natureza da mente é o condicionamento. Exibimos por trás de cada atitude, palavra ou pensamento uma marca mental, que dá o tom ou as cores da nossa interpretação de mundo. Uma mesma situação pode ser compreendida de forma diferente por várias pessoas, de acordo com o influxo do pano de fundo ou dos condicionamentos que trazem em suas mentes.

Como exemplo, observe com atenção a figura abaixo:



O que você vê na imagem acima: Um hexágono? Um cubo com a face superior olhando-se de cima para baixo? Um cubo com a face inferior olhando-se de baixo para cima?

Pois, é... Note que mesmo havendo três possibilidades, ou seja, mesmo que consigamos visualizar as três figuras, existe sempre uma delas que teima em permanecer em nossa tela mental, condicionando nossa percepção, e dificultando a identificação das outras duas.

Essa é uma ação típica da mente-ego que interpreta as situações no mundo sensível de acordo com sua conveniência, condicionando nossas vidas sem que, na maioria das vezes, tenhamos consciência disso. Esse viés utilizado pelo ego para interpretar o mundo de acordo com suas concepções tem origem na própria estrutura egóica, herdada das memórias acumuladas (pensamentos e emoções) por meio das experiências do ser na dimensão do sensível.

Como então colocarmos os pés no Caminho Perfeito de que nos fala o poema do Mestre Seng Ts’na, caminho este totalmente livre dos condicionamentos?

O segredo é percebermos que o vazio está presente em todas as coisas. Não aquela idéia de vazio deduzida pelo intelecto, que nada mais é do que a negação de algo ou da própria existência.

A vacuidade aqui pretendida não pode ser definida pela mente-ego, pois se constitui na própria natureza incondicionada do Ser, ou seja, a natureza búdica, livre de marcas mentais, por meio da qual, percebemos as coisas como elas são.

Este caminho perfeito, de que nos fala Seng Ts’na, é o momento presente, o agora. Estar presente significa a própria conexão entre o Ser e o mundo sensível, isto é, entre a Testemunha de tudo e o Tudo. A simples consciência desse fato é capaz de transformar a Testemunha e o Tudo em um só.

Em razão da sua natureza condicionada, a mente fraciona a realidade exterior em sujeito e objeto, dando-nos a falsa impressão de que existimos separados do mundo sensível. E neste contexto, a linha temporal na qual se baseia a existência física, reforça esse processo de distinção, na medida em que as recordações da memória e as imagens criadas pela imaginação que projeta o amanhã são instrumentos desse condicionamento, utilizados pela mente para criar a ilusão de que objetos e pessoas estão fora de nós.

Portanto, viver a plenitude do agora é estar liberto da memória (passado) e do vir-a-ser (futuro). Quando vivemos nossa vida plenamente ancorados no instante presente, nos libertamos de forma consciente de dois tipos de condicionamentos que bloqueiam nossa percepção acerca das coisas como elas realmente são: 1) a repetição de padrões mentais que se estabelecem automaticamente em razão de comparações quase instantâneas realizadas pela mente-ego entre aquilo que experimentamos no agora e recordações de situações semelhantes vivenciadas no passado; 2) sobreposição de imagens projetadas para o futuro sobre nossa compreensão acerca da situação presente, geradas pela ansiedade da mente-ego, que não gosta de sentir insegurança quanto ao porvir, e por isso utiliza-se da imaginação para garantir a satisfação dos seus desejos.

Assim, estar presente é apenas ser, sem julgamentos ou comparações, sem certo ou errado, nem bonito, nem feio, nem alto, nem baixo. É na plenitude do agora que todos os opostos, toda dicotomia se complementa, e podemos então perceber a unidade.

Essa prática no Zen se chama Shikantaza, ou seja, simplesmente estar presente, simplesmente ser, simplesmente fluir na eternidade do agora.

Os condicionamentos e as marcas mentais têm sua origem na memória e na ansiedade do vir-a-ser. Por isso, viver cada instante com plena atenção é ser livre, pois o momento presente em si, sem as limitações temporais do passado e do futuro, é vazio de marcas mentais e condicionamentos. Este é o sentido verdadeiro de vacuidade e também de liberdade.

Logo, se estou plenamente focado no agora, sem deixar que a mente vagueie pelos labirintos ilusórios das recordações e das previsões, minha percepção acerca de determinada situação não difere mais da percepção do outro, pois não há mais a interposição do viés do ego entre nós. O momento presente liberta da separatividade.

No agora, não me encontro mais separado do outro, pois não existe mais a minha compreensão e a compreensão do outro. Sem o pano de fundo da mente-ego, as coisas são como elas são, e, portanto, o mundo sensível não depende mais das opiniões do ego para ser compreendido.

Por isso, aquele que vive no instante presente torna-se imune à opinião alheia, que não mais o atinge, nem o instiga, nem tampouco o aborrece. Para ele, já não há mais sentido em querer convencer ou impor ao outro a sua opinião, pois sua antiga compreensão das coisas, a compreensão da mente-ego, da qual ele extraía opiniões intelectuais e separatistas sobre o mundo sensível, já não mais existe.

E se opiniões e definições intelectivas já não são mais importantes, então não existem mais diferenças entre ele e o outro. Surge desse fato um sentimento natural de aceitação do outro, fruto da compaixão, aqui compreendida como a percepção que nasce da compreensão de que temos a mesma origem, o mesmo gérmen, a mesma semente.

Portanto, viver a plenitude do agora faz com que resgatemos nosso sentimento mais profundo de humanidade, respeitando e acima de tudo reconhecendo o outro.

Estar plenamente imerso no presente é, pois, o caminho perfeito. Trilhar esse caminho é romper os grilhões da ilusão da separatividade criada pelos condicionamentos da mente-ego. E viver sem condicionamentos é realizar a liberdade de ser uno com tudo e todos.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Continuação: As quatro nobres verdades e a crise financeira mundial


No post anterior falamos da segunda nobre verdade, que nos revela a causa do deslocamento da vida: - o anseio egoísta. No exemplo utilizado, o desejo do ego em querer sempre mais, faz com que pessoas invistam tudo o que têm no mercado de ações. Como o objeto do desejo torna-se uma extensão do ego, cada ação se transforma em uma parte intrínseca do investidor. Ao sobrevir a crise financeira mundial, com a conseqüente queda nas cotações das bolsas de valores, foi como se cada pessoa perdesse um pedaço de si mesma, o que acarretou a dor e o sofrimento da perda.

É aceitável então pressupor que ao superarmos o anseio egoísta, o eixo da nossa existência deixa de estar deslocado em relação à harmonia do universo, e com isso o sofrimento cessa. É disso que trata a Terceira nobre verdade: - a possibilidade de cessação do sofrimento, por meio da superação do desejo.

Esse encadeamento de verdades proposto pelo Senhor Buda é extraordinariamente simples e ao mesmo tempo profundo.

Ao explicar que a compreensão do sofrimento (1ª nobre verdade) permite identificar o anseio egoísta como sua causa (2ª nobre verdade), Buda apresenta-nos o sofrimento como o dilema existencial do ser humano, com o qual viemos nos defrontando, vida após vida.

Por outro lado, ele afirma que é possível cessar o sofrimento por meio da superação do anseio egoísta, e com isso, mostra-nos que existe uma saída, uma solução para esse dilema. De acordo com os ensinamentos do Budismo a cessação do sofrimento (3ª nobre verdade) é alcançada quando trilhamos o caminho óctuplo (4ª nobre verdade, sobre a qual falaremos no próximo post).

Neste sentido, as quatro nobres verdades do Budismo se assemelham a um medicamento para cura do sofrimento, e Buda as apresenta como se fosse um médico que faz um diagnóstico, emite um prognóstico e prescreve um tratamento.

Ao diagnosticar a condição humana, ele reconhece a natureza existencial do sofrimento (1ª nobre verdade), em razão da impermanência que se faz presente em tudo que é exterior ao Ser. Ainda nesta etapa, examina os meandros do sofrimento, e descobre suas origens n desejo centrado em si mesmo (2ª nobre verdade).

A seguir, Buda emite então um prognóstico, ao concluir que o sofrimento pode cessar (3ª nobre verdade), e, que existe, portanto, possibilidade de cura. Qualquer pessoa, independente de raça, credo ou condição social, pode promover a cessação do sofrimento mediante a superação do anseio egoísta.

Finalmente, ele prescreve um tratamento eficiente e eficaz por meio de um método de viver (4ª nobre verdade) chamado caminho óctuplo, cujo objetivo é devolver-nos a compreensão daquilo que de fato somos: - perfeição absoluta.

Assim, quando superamos o desejo, mesmo que momentaneamente, o sofrimento naquele instante acaba, e tocamos a dimensão atemporal do Ser, o aqui e agora, onde não existe início, meio e fim, nem tampouco passado e futuro.

A cessação momentânea do desejo significa o vislumbre de uma abertura fugaz no céu nebuloso do sofrimento humano, por onde penetram os raios do Ser Interior, clarificando coisas e situações, produzindo em nós o insight da compreensão direta daquilo que realmente somos.

Neste instante, já não existem mais dúvidas provocadas pela comparação e recordação das lembranças e pela expectativa e angústia quanto ao futuro. Vemos as coisas de fato como elas são, sem nos deixar influenciar pelo pano de fundo das experiências acumuladas em nossa memória e pela ansiedade de um futuro criado pela imaginação do ego que busca de todas as formas perpetuar seu domínio secular sobre nós.

Daí a importância da prática diária da plena atenção, sejam pelo zazen ou qualquer outro tipo de meditação que aquiete a mente, pois esses momentos de plenitude, pouco a pouco vão se dilatando, até que o ego seja completamente absorvido pelo Ser e alcancemos aquilo que alguns chamam de iluminação, nirvana, samadhi, ou seja, a compreensão direta Daquilo que realmente somos.

Nessa trajetória, é importante compreendermos que o ego (nossa estrutura mental, intelectual e emocional) não gosta da impermanência ou da transitoriedade de coisas e situações, pois esse tipo de percepção nele provoca insegurança e medo com relação ao futuro.

É esse medo e insegurança que nos levam à preocupação excessiva com a aposentadoria, induzindo-nos a passar boa parte da existência envidando esforços para adquirir mais e mais, com a ilusão de que somente assim teremos um futuro garantido para nós e para aqueles a quem amamos. Daí sermos levados a buscar o ganho fácil por meio da aplicação nas bolsas de valores, loterias, etc. Aplicar na bolsa ou jogar na loteria em si não é um ato condenável. O problema é acreditarmos que essas ações são reais, e que seus efeitos ou ganhos nos trarão felicidade e realização. Esse é um entendimento típico do ego que não consegue perceber que as coisas exteriores são impermanentes. Compreender a vacuidade das coisas é o trampolim de onde nos projetamos para o mergulho no Ser, sem medo de viver o presente, nem tampouco insegurança quanto ao futuro. A crença de que o passado e o futuro são reais é um dos grandes obstáculos a esse salto, pois perdemos o foco no presente.

A expectativa futura é ilusória porque quando chega o futuro, o ego já criou outras necessidades diferentes daquelas que projetamos, mesmo que os objetos de desejo tenham sido conquistados. E assim, seguimos perdidos, sempre insatisfeitos, inseguros e com medo, navegando no mar da existência ao sabor das ondas da impermanência.

A presença do desejo ou anseio egoísta nos torna incapazes de perceber que qualquer que seja o resultado do investimento na bolsa de valores, ou qualquer outra ação semelhante, nós sempre continuaremos insatisfeitos e inseguros.

O problema aqui não está em ter, mas em ser. Acreditar que temos ou possuímos algo gera deslocamento do eixo da roda da vida, pois essa é uma idéia típica do anseio egoísta. É sobre isso que Buda nos convida a refletir: - precisamos compreender as coisas como elas são. E para que alcancemos essa percepção, o conceito de vacuidade torna-se fundamental.

Nossas ações devem ser precedidas pelo esvaziamento da intenção egoísta, que busca sempre a realização pessoal em todo pensamento, palavra ou atitude. No Taoísmo, este é o verdadeiro sentido do Wuwei, isto é, da ação através da não-ação. Não-ação absolutamente não significa passividade, ociosidade. Ao contrário, o não - agir é ativo, dinâmico, pois é vazio dos desejos egoístas que limitam a liberdade e a criatividade do homem. Não – agir implica em fluir de acordo com cada circunstância. É um viver específico para cada momento, que nos auxilia a manter o foco no instante presente, sem se deixar aprisionar pelas impressões da memória ou pela expectativa futura.

Para o ego, a vida resume-se a uma linha temporal que liga o passado ao futuro, e que tem numa extremidade o nascimento físico e na outra a morte. Essa imagem é a própria personificação do sofrimento, pois passamos a maior parte das nossas vidas presos à nostalgia ou tristeza pelas recordações do passado e à angústia ou aflição pela expectativa do futuro. E o anseio egoísta, causa do sofrimento, nasce exatamente dessa ilusão temporal, onde a mente cria necessidades impermanentes com base em fatos passados, projetando-as como segurança para um futuro ilusório.

Se outrora tivemos e hoje não temos mais, sofremos. Se nunca tivemos, e sonhamos em ter amanhã, também sofremos. Se hoje temos e queremos mais, novamente somos confrontados pelo sofrimento. É assim que a mente-ego flutua no mar revolto desse lapso temporal que chamamos vida. Sem perceber que a chave para libertar-se é a plena atenção no agora, o ego entrega-se ao sofrimento, por não perceber a impermanência em tudo aquilo que o rodeia, e de onde ele espera inutilmente obter felicidade.

A terceira nobre verdade, em complemento às duas nobres verdades anteriores, ao anunciar a cessação do sofrimento, indica-nos a plena atenção no agora, como forma de superarmos o anseio egoísta. Quando vivemos a plenitude do presente, não somos mais movidos por intenções ou desejos do ego, nascidos das recordações do passado ou do anseio pelo futuro.

Segundo essa concepção, a vida deixa de existir como uma estrada que liga nosso nascimento a um destino, e passa a significar a própria caminhada. O segredo da cessação do sofrimento é viver a plenitude de cada passo da jornada, dia a dia, instante a instante, percebendo as coisas como de fato elas são, sem deixar que nossa compreensão seja turvada pelas lembranças ou pela expectativa do vir a ser.

Se adotarmos essa prática de viver que privilegia mais o ser do que o ter, cultivando a quietude de uma vida simples, dia virá em que compreenderemos num só átimo o sentido da vacuidade, e logo todos os desejos egoístas desaparecerão, pois serão satisfeitos ao perceberemos que tudo está em nós, que somos o próprio universo. Nesse instante, finalmente compreenderemos, e experimentaremos cada gota divina das verdades vertidas pelo Sutra do Coração:

Ó Shariputra, a forma é vacuidade, a vacuidade é a forma. A forma não é outra senão a vacuidade, a vacuidade não é outra senão a forma. As sensações, percepções, vontade e consciência também são assim.

Ó Shariputra, todos os fenômenos são vacuidade. Não aparecem nem desaparecem, não são impuros nem puros, não crescem nem diminuem. Portanto, na vacuidade não há forma, sensação, percepção, vontade, consciência; não há olho, ouvido, nariz, língua, corpo, mente; não há cor, som, odor, sabor, tato, fenômeno; não há [reino dos sentidos, desde] o reino da visão até o reino da mente; não há [elos da existência dependente, desde] a ignorância e o fim da ignorância até a velhice-e-morte e a fim da velhice-e-morte; não há [as Verdades Nobres sobre] o Sofrimento, a Origem, a Cessação, o Caminho; não há sabedoria, nem ganho, nenhum ganho.

Sem o que ganhar, o Bodhisattva permanece na perfeição da sabedoria e não tem obstáculos em sua mente. Sem obstáculos e, portanto, sem medo, ele fica bem distante das delusões. Isto é o nirvana.

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BATCHELOR, S. Budismo sem crenças: a consciência do despertar. São Paulo: Palas Athena, 2005.

SMITH, H.; NOVAK, P. Budismo: uma introdução concisa. São Paulo: Cultrix, 2007.

sábado, 19 de setembro de 2009

Continuação: As quatro nobres verdades e a crise financeira mundial


No post anterior, vimos que a impermanência do mundo produz sofrimento, na medida em que pessoas e coisas fora de nós, às quais nos apegamos, são temporárias, transitórias, passageiras. O sentimento de posse ou apego nos faz considerar o objeto de desejo como parte de nós. Assim, quando esse objeto de alguma forma se extingue, sobrevém o sentimento de perda, que abre em nós as feridas da dor, do sofrimento.

Compreender de forma correta a causa dessas feridas é fundamental ao homem em sua busca pela libertação. É disso que trata a Segunda Nobre Verdade. Segundo Buda, a causa do deslocamento da vida (dukkha) é tanha, palavra do idioma páli, normalmente traduzida por “desejo”.

Porém, é preciso compreender que tanha trata de um tipo específico de desejo: - o desejo de realização pessoal. Quando somos altruístas, e pensamos de forma espontânea, mais nos outros do que em nós mesmos, tanha se mantém distante, pois, esse tipo de atitude enfraquece o ego. É bem verdade que ser desapegado exige de nós percepção profunda acerca daquilo que move nossas ações.

Muitas vezes, envolvemo-nos em ações filantrópicas, que em verdade escondem outras motivações que não apenas a felicidade de servir, como por exemplo, o desejo, ainda que sutil (mas ainda assim desejo...), de ser reconhecido. O mesmo ocorre com o desejo de iluminação, que muitas vezes esconde a satisfação ilusória de se tornar superior, um instrumento de auxílio à humanidade. Isso significa apenas uma coisa: o ego está mais presente do que nunca, e ao agirmos assim, tanha, a súdita mais obediente do ego, nos leva de roldão de volta aos grilhões do sofrimento, retirando-nos da dimensão da liberdade, onde se age através da não-ação, isto é, onde não nutrimos motivos, expectativas ou desejo de alcançar o que quer que seja como fruto das nossas ações (o wuwei do taoísmo).

No fundo, tanha é fruto da nossa miopia espiritual, em acreditar que estamos separados das pessoas e coisas que nos rodeiam. Não percebemos que essa miopia é causada pela ilusão de termos uma identidade individual, traduzida em um corpo, com uma árvore genealógica, nome, família, empregado na organização tal, que gosta disso ou daquilo, que tem essa ou aquela preferência.

Tanha, pois, consiste de todas “aquelas inclinações que tendem a continuar ou aumentar a falsa percepção de uma existência separada do objeto do desejo; de fato, Tanha sintetiza todas as formas de egoísmo; a essência à custa da qual o próprio desejo se realiza. Sendo a existência una, tudo o que tende a separar um aspecto do outro causa sofrimento à unidade que, quase sempre, inconscientemente, trabalha contra essa lei. Nossa tarefa para com nossos semelhantes é compreendê-los como extensões de nós mesmos – facetas semelhantes da mesma realidade” *

Se compreendêssemos a verdade de que todo o universo exterior está contido em nós mesmos; que somos o próprio universo, que admira a si mesmo por nosso intermédio, certamente não mais haveria objetos de desejo, e conseqüentemente desejo, pois compreenderíamos que tudo já está presente em nossa natureza última, em nosso ser interior, em nossa natureza búdica ou em nossa essência divina.

No caso da crise financeira mundial, é justamente o desejo de querer sempre mais e mais, com vistas a alcançar a tão desejada realização pessoal, mais comumente conhecida como sucesso na vida, que se transforma em causa do sofrimento de tantas pessoas, como aquele meu colega de trabalho, citado no post anterior. O sentimento de posse e apego ao dinheiro acabou produzindo dor e sofrimento nos acionistas das bolsas de valores, quando essas despencaram, e o dinheiro aplicado se perdeu. Essa perda fez os acionistas sofrerem, como se uma parte deles tivesse sido arrancada.

No âmbito mundial, isso se repercutiu em todos os países, mostrando que tudo está interligado na ordem que preside a existência física. Por sinal, este sentimento de separatividade tem sido um dos grandes equívocos das nações e governos, conforme vem demonstrando a crise financeira mundial e também os desacertos de ordem ecológica que tanto têm assolado o planeta, pondo em risco o equilíbrio da natureza.

Portanto, a Segunda Nobre Verdade nos indica que para eliminarmos o sofrimento, é preciso abrir mão do desejo. E como fazer isso?

Antes de tudo, é preciso cultivar a compreensão correta acerca do que são os desejos e os estados mentais que eles produzem. Sempre que surge um desejo, a reação habitual do ego é de negação ou indulgência. Isso está de tal forma, arraigado no psiquismo humano, que o indivíduo é levado de roldão pela situação, e não consegue perceber no bojo dos estados mentais provocados pelo desejo a fala do Buda dizendo: “Abra mão!

Desejo: "Vou aplicar na bolsa de valores". Estados mentais associados: “Se ganhar comprarei aquele carro importado que há tanto tempo desejo”. “E se eu perder? Não... Não quero nem pensar nisso... Isso não vai acontecer comigo... Conheço profundamente o mercado de ações, e tenho certeza de que tudo vai dar certo...Além do mais, não se consigo mais viver sem aquele carrão..."

Quando surge um desejo, é assim que age o ego, negando ou sendo indulgente com a situação. Assim, abrir mão não significa um eufemismo que tem por objetivo reprimir o desejo. Aliás, reprimir desejos não é um bom caminho para acabar com eles, pois o simples pensamento ou atitude de querer reprimi-los já é um desejo.

Portanto, abrir mão implica, antes de tudo, compreender, com aceitação calma e clara atenção, aquilo que está acontecendo. Um aspecto que deve ser considerado é o fato de que, embora o desejo (segunda verdade) possa ser origem ou causa do sofrimento (primeira verdade), isso não significa absolutamente que essas duas verdades sejam coisas separadas. Assim como o cultivo do desejo em nossas vidas cristaliza o sofrimento, e faz surgir a dor, da mesma forma, a atenta e correta observação e compreensão desse movimento causal (desejo → sofrimento) nos faz abrir mão espontaneamente do desejo, na medida em que ele se extingue por si só.

Dessa maneira, abrir mão de um desejo não é rejeitá-lo ou tentar negá-lo por meio do bloqueio dos pensamentos ou das emoções. Ao contrário, é permitir que ele seja o que de fato é: - um estado mental contingente, transitório, efêmero, que se extinguirá da mesma forma que surgiu. Ao invés de tentarmos nos livrar dos desejos à força é importante notarmos que é da natureza do desejo perder sua intensidade até extinguir-se, quando é atentamente observado. Isso somente ocorre quando observamos as coisas de fato como elas são. Para isso é fundamental vivermos com nossa atenção voltada para o agora, não somente ao longo do zazen (meditação zen), mas durante todo o dia.

É por isso que sabedorias orientais como o Budismo, o Taoísmo e o Hinduísmo enfatizam tanto a importância de estarmos plenamente focados no momento presente. No budismo zen, Shikantaza (estar presente, simplesmente ser) se pratica no agora, e não nas lembranças do passado (que já foi presente) ou na expectativa ou ansiedade do futuro (que será presente). Viver a plenitude do momento presente é o mesmo que dizer que o Observador, a Testemunha de tudo (a Natureza búdica) ao viver o agora, desfaz a ilusão do ego que necessita de um início, meio e fim para existir. O ego se alimenta da memória e da ansiedade ou expectativa pelo futuro. Quando vivemos o agora, interrompemos o fluxo do vir a ser, e o ego se enfraquece. A experiência do agora nos permite passar a ver as coisas sem a interferência do pano de fundo da memória e da expectativa pelo amanhã, ou seja, nos dá condições de viver no domínio atemporal do Ser.

No fundo, quando no identificamos com o desejo, (quero isso, não quero aquilo), estamos agarrando com mais força a separatividade, pois reforçamos como verdadeira a crença ilusória de que existe algo fora de nós. Ao agirmos assim, surge, de forma inevitável, o medo da perda, que acaba intensificando a resistência oposta pelo movimento natural da vida àqueles que lhe são contrários. Isso ocorre por que o fluxo natural da existência, essência da nossa própria natureza búdica, não coaduna com a ilusão do ego, e age no sentido de restabelecer a harmonia do cosmos. Esse o sentido mais profundo do carma.

Deduz-se daí que a experiência do momento presente, transformando a vida num continuum, onde um agora se sucede ao outro, sem interferências do passado e do futuro, estados mentais criados pelo ego, também nos ensina a viver em consonância com o fluxo natural da vida, evitando as resistências e reações iguais e contrárias que o universo exerce naqueles que contrariam sua harmonia, o que significa, em última instância, libertar-se dos processos cármicos. Os chineses com o Wuwei (ação por meio da não-ação) e os hindus com os princípios da Karma Yoga, já haviam percebido o poder libertador existente no ato de apenas fluirmos com a vida, sem deixarmos que o ego ofereça resistências ao seu influxo.

Se não exercitarmos essa compreensão o desejo continuará seu caminho, de um simples estado mental até se tornar uma compulsão. Assim, se o passo inicial do abrir mão é termos a reta compreensão acerca do desejo, seu próximo desafio está ligado ao reto agir, que implica na tomada de atitude, na decisão firme de observarmos atentamente o desejo, de forma a evitar que as reações habituais do ego na rotina diária, turvem nossa percepção, e o consolidem em nossa mente.

Portanto, por meio da compreensão da segunda nobre verdade do budismo, pode-se inferir que a observação atenta do desejo, no instante em que ele surge, permite-nos enxergar claramente a natureza passageira, duvidosa e contingente da realidade tridimensional em que estagiamos. O desejo sobrevive apenas na dimensão temporal, e seu nascimento presume uma ação do indivíduo, que busca na memória (passado) algum material de comparação com determinada situação por ele experienciada no agora. Se a posse do objeto de comparação indicar ao ego a possibilidade de maior segurança no vir a ser (futuro), surge imediatamente o impulso de conquistar tal objeto.

No fundo todo desejo visa dar segurança ao ego, que sabe da sua transitoriedade, da sua impermanência, e por isso mesmo quer, por meio da prática de sempre querer mais, garantir seu controle em nossas vidas ao longo de uma linha de tempo, que para o ego é real. A reencarnação na dimensão física parece ser exatamente essa linha de tempo, na qual o ego se manifesta, e cria os estados mentais de início, meio e fim; nascimento, vida e morte; passado, presente e futuro. A iluminação, isto é, a percepção do Ser acerca da sua própria perfeição é a via de libertação para a ilusão temporal da reencarnação. Iluminado, o ser passa a viver na dimensão atemporal da essência divina, onde tudo é uno; onde, nos disse Jesus, Ele e o Pai são um.

Jesus também já nos alertava sobre a importância do agora, quando disse: “Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã se preocupará consigo mesmo” (Mt. 6,34). Paulo de Tarso também dizia: - “Aprendi a contentar-me com o que tenho” (Filipenses, 4:11). Esses preciosos ensinamentos cristãos, quando analisados no mundo atual, onde a obtenção de coisas materiais e a previdência quanto ao futuro são interpretadas como grandes virtudes do homem fadado ao sucesso, podem parecer orientações estranhas e inadequadas. No entanto, essas palavras escondem a chave para compreensão perfeita acerca da segunda nobre verdade, cuja prática pode levar o homem a abrir mão dos desejos, e fazer cessar o sofrimento (terceira nobre verdade).

Exercitar a plenitude do agora e ao mesmo tempo compreender que já temos tudo de que necessitamos, são insights preciosos para extinguirmos os desejos. Aquele que vive em plena liberdade, focado no momento presente, retira o dharma dos livros e cânones budistas, e o coloca em sua prática diária.

Se quisermos compreender a terceira nobre verdade (a cessação do sofrimento) e atingirmos a dimensão atemporal do Ser precisamos, de fato, aprender, em nossa rotina diária, a abrir mão dos desejos, ou seja, a cultivarmos a reta compreensão de que eles são apenas uma espessa neblina criada pelo ego, que logo se esvai sob o influxo do sol da natureza búdica, que habita em cada um de nós.


* Budismo: Uma introdução Concisa - SMITH, Houston, NOVAK, Philip

Budismo sem crenças: A consciência do despertar - BATCHELOR, Stephen

domingo, 24 de maio de 2009

As quatro nobres verdades e a crise financeira mundial


Há dias tenho observado uma crescente tensão no rosto de um colega de trabalho. Contumaz investidor na bolsa de valores, a cada notícia de queda acentuada no valor das ações, a impaciência e a angústia se fazem notar não apenas em sua fala e atitudes, mas principalmente no seu semblante.

Assim como ele, milhões de pessoas no mundo inteiro sofrem os efeitos dessa “quebradeira” geral de instituições financeiras que se especializaram em ganhar com especulações e acabaram tornando-se vítimas de sua própria armadilha. Essa instabilidade geral nos mercados financeiros é a expressão daquilo que Zygmunt Bauman, sociólogo polonês radicado na Inglaterra, chama de Modernidade Líquida.

A liquidez que domina a vida moderna expressa a mais absoluta instabilidade que rege o mundo das formas físicas, onde tudo é transitório, efêmero, fugaz e impermanente, incluindo-se nesse rol, nos dias atuais, até mesmo as relações humanas. No caso da desvalorização de ações, organizações tidas como sólidas e duradouras desmancham-se da noite para o dia, tirando o sono de milhares de acionistas. O moderno computador de hoje torna-se ultrapassado daqui a poucos meses. O relacionamento que se iniciou, muitas vezes baseado nos atributos da beleza física, termina com o passar do tempo em razão do envelhecimento do corpo. Em um mesmo ano as montadoras lançam mais de um modelo do mesmo automóvel, frustrando os consumidores que adquirem um carro novo no início do ano. Troca-se de namorado(a), esposo(a) ou parceiro(a) como se troca de roupa, de acordo com a conveniência da situação ou em decorrência da perda do encanto do primeiro encontro.

O fenômeno é tão marcante e de tal forma seduz a personalidade humana, que provoca a exacerbação do consumismo, a níveis nunca antes vistos. Ninguém quer ficar fora da moda, do que é novo, mesmo que para isso tenha de trocar de carro duas vezes no mesmo ano, e continuar morando de aluguel.

O fato é que essa impermanência, habilmente urdida pelo ego nas tessituras da mente, e por isso mesmo estimulada pela ambição dos que detêm o poder no mundo, acaba gerando no ser humano um desejo incontrolável de sempre querer mais.

É assim, que a mente-ego funciona. Atrás de um desejo saciado, surge sempre um novo desejo, pronto para manter acesa a chama da insatisfação humana. E ao sabor das ondas desse feroz oceano de desejos, o homem sofre ao viver uma vida limitada, imposta pela tirania da ilusão provocada pelo ego. Em decorrência de tudo isso, abate-se sobre ele o efeito avassalador do sofrimento, da angústia, da depressão, da falta de sentido para a vida.

Existirá uma alternativa para esse estado de coisas? Estaremos condenados ao sofrimento ou existe uma possibilidade de sermos felizes, de fato?

Ao que parece sim. O Poder Criativo do Cosmos, sempre atento às necessidades humanas, de séculos em séculos, permite o surgimento na Terra de seres iluminados, que à maneira de estrelas-guia, brilham no céu da escura noite das vicissitudes humanas, indicando o rumo para a felicidade.

Um desses seres, o Senhor Buda, há mais de 2.500 anos atrás, na Índia antiga, para regozijo da esperança, apontou-nos um caminho de libertação do sofrimento provocado pela impermanência que permeia o mundo das formas.

Ele abordou a questão ensinando-nos quatro nobres passos ou verdades, cuja compreensão são imprescindíveis para quem deseja trilhar o caminho para libertação da dor. O primeiro deles é reconhecer que o sofrimento existe. Que significa isso?   Antes, cabe aqui uma pergunta de ordem ontológica: Quem realmente sofre? O ego ou o Ser? Quem é ao mesmo tempo causador e vítima desse sofrimento?

Buda percebeu que a vida, da forma como a experimentamos, ou seja, da maneira que a vivenciamos por meio da mente-ego, é frustrante, insegura, instável, e por isso mesmo gera sofrimento.  Quem pode dizer com honestidade quantas vezes ao dia se sente verdadeiramente feliz, independentemente de qualquer coisa, pessoa, fato, palavra, pensamento ou ação? Para Buda, o nível de existência que a maioria de nós vive é superficial, e nele dukkha reina soberanamente.

Dukkha é um termo normalmente traduzido como sofrimento, dor, mas quando era utilizado na língua Páli (língua falada à época do Buda) tinha também “o significado de rodas cujos eixos estavam fora dos centros” [1]. Assim, o homem atual vive uma vida deslocada, fora de centro. Existe algo de errado com a roda do nosso modus vivendis que  está descentrado por ter seu eixo focado na impermanência, ou seja, giramos a vida em torno de um pivô que não é real, e isso provoca fricção excessiva (conflitos internos), bloqueando o movimento (criatividade) da existência, o que acaba por gerar o calor da dor. 

Buda também identifica os seis momentos da vida em que esse deslocamento da existência se evidencia: 1- o trauma do nascimento que se torna a semente da ansiedade que brotará ao longo da existência, nos instantes em que nos sentimos ameaçados e somos submetidos a dolorosos sentimentos e descargas de excitação e sensações físicas; 2- a patologia da doença que desvela a realidade contundente da impermanência do corpo humano; 3 – a morbidez da decrepitude que gera todos os medos presentes nos anos finais da vida (medo da dependência financeira, medo de não ser amado, medo da doença, da dor, medo da decrepitude física e de se tornar dependente dos outros, medo de avaliarmos nossa vida como um fracasso); 4 – a fobia da morte  propiciando  o surgimento no homem de um quase terror, que acaba maculando a vida sadia; 5 – estar preso àquilo de que não se gosta, acarretando um martírio para o homem até o final da sua vida física (uma doença incurável, um defeito físico ou de caráter, etc.); 6 – estar separado daquilo que se ama.

Todas essas situações se configuram na Matrix que aprisiona o homem com os grilhões do sofrimento, e faz a dor tomar consistência quase palpável e real diante do equivocado olhar ilusório com que encaramos a vida. Assim, o primeiro nobre passo no caminho da libertação, nos mostra duas dimensões profundas do sofrimento.

Na primeira, compreendermos que por mais que se consiga o objeto do desejo, a felicidade ou prazer da conquista não perdura por muito tempo. Todo prazer acaba, deixando na boca aberta da rotina diária a sede por sua renovação. Assim, na dimensão da Matrix (mente-ego) sempre que o homem buscar nas coisas exteriores uma satisfação duradoura a impermanência vai assegurar a presença de dukkha, e com ela o sofrimento, mostrando-nos que estamos deslocados, fora do centro da harmonia universal.

A segunda dimensão revela que não apenas o mundo das aparências ou da experiência diária é impermanente, mas também nós, enquanto mentes-ego que estagiam nesse mundo, também somos. Esta é uma questão central na compreensão do caminho que liberta o homem do sofrimento. Buda nos mostra que aquilo que normalmente chamamos de nosso “eu”, que Martin Heidegger, filósofo existencialista alemão, chamava de ser-no-mundo, e que aqui denominamos mente-ego, em verdade não passa de um ente em constante mutação, impermanente, composto de cinco elementos que ele chamou de skandhas: - corpo, sensações, percepções, tendências de disposição e consciência. A única saída é desenvolvermos a compreensão correta de quem realmente somos: essências divinas eternas, unas com o Poder Criativo, e portanto imunes à impermanência do mundo das formas. 

Sabemos que a mente-ego, para existir, precisa se identificar com algo, e, portanto, em seu esforço pela identificação com os cinco skandhas que são impermanentes, efêmeros, transitórios, acaba não se realizando, e daí nasce a busca desenfreada pela satisfação dos desejos, origem de todo o sofrimento. Não percebemos que o mundo das formas é vazio, ou seja, não possui existência por si mesmo, sendo totalmente dependente da percepção do ego. 

Para Buda esses cinco componentes de apego que compõem a mente-ego também são dukkha, e o homem, ao se identificar e acreditar na existência real desses skandhas, permite que sua existência seja levada de roldão por um redemoinho de automatismos e condicionamentos, que poucos compreendem. Até que cesse a ignorância acerca de quem realmente somos, e descubramos o Ser interior, ficaremos privados da verdadeira alegria de viver.

Esse o problema dos investimentos nas bolsas de valores que trazem ciclos de expectativas e frustrações a milhões de pessoas no mundo inteiro. A tal crise financeira que origina o sobe e desce dessas bolsas nada mais é do que a mostra inequívoca da existência da impermanência. O problema não está nas condições estruturais de bancos e organizações financeiras, como nos querem fazer acreditar os economistas, mas sim na crença de que essas estruturas, inclusive o próprio mercado financeiro, são reais, sólidas. Até por que, partindo do pressuposto de que todo esse sistema mundial foi arquitetado pelo homem, pode-se perguntar: - Como pode o ego, por meio dos seus cinco agregados impermanentes (corpo, sensações, percepções, tendências de disposição e consciência), ser capaz de criar algo permanente, duradouro?

Neste ponto, surgem outras perguntas importantes: - Afinal de contas, quem é o investidor? Quem fica eufórico com o ganho? Quem fica frustrado, infeliz, deprimido com a perda? A saída é deixar de aplicar na bolsa, ou compreender de fato quem somos?

Compreender a diferença entre ego e Ser, e o fato de que somos algo permanente, que transcende os limites do ego pensante e do binomio tempo-espaço, que é imune às variações de humor da vida, tais como alegria e tristeza, é fundamental para recuperarmos o equilíbrio e a harmonia de viver.

E para isso, Buda nos diz que precisamos ir ao cerne do problema, ou seja, conhecer a causa dessa ferida de nascença, chamada dukkha, que tanto atormenta o ser humano, deslocando sua vida e roubando-lhe a felicidade. Este é o propósito do segundo nobre passo do caminho, que veremos no próximo post.


[1]  SMITH, Huston; NOVAK, Philip. Budismo – Uma Introdução Concisa. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix LTDA, 2ª edição, 2007, p.42.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Esvaziar-se

Um professor universitário visitou Nan-in, o mestre zen, para perguntar sobre o zen. Contudo, em vez de ouvir o mestre, o professor se limitou a falar sobre as próprias idéias. Depois de ouvi-lo por um tempo, Nan-in serviu chá. Encheu a xícara do visitante e continuou a servir o chá. O líquido transbordou, encheu o pires, caiu nas calças do homem e no chão.

– Não está vendo que a xícara encheu? – explode o professor. – Não cabe mais nada!

– Isso mesmo. – responde calmamente Nan-in. – Tal como essa xícara, você está cheio de suas próprias idéias e opiniões. Como poderei mostrar-lhe o zen se você não esvaziar sua xícara primeiro?

Assim como o professor universitário do conto acima, vivemos cheios de teorias e explicações sobre a vida. Acreditamos que conhecer aquilo que está fora de nós nos levará ao encontro com a verdade, e por isso mesmo nos empenhamos em acumular conhecimento intelectual acerca do mundo exterior que nos cerca. 

Transformamos nossas vidas em um eterno questionar do intelecto, em uma busca febril por coisas que satisfaçam a nossa sede de desejos. Queremos respostas prontas e travamos intermináveis reflexões, que supostamente nos levarão à verdade. Passamos a vida correndo atrás de objetivos: - o curso superior, o mestrado, o doutorado, a casa própria, a família, o seguro de vida, o carro do ano, o posto mais alto no trabalho, a fama, o reconhecimento, a casa de campo, as férias no nordeste do Brasil, o natal na Europa, a viagem à Índia em busca de sabedoria, a boa aposentadoria, a herança para os filhos e netos, etc, etc. E ao final da vida percebemos que envidamos tanto esforço para chegar a lugar nenhum. Reconhecimento e valorização são para nós metas inadiáveis, e quando não as obtemos sofremos. 

Devido ao excesso de erudição e conhecimento acreditamos que somos os donos da verdade. Queremos explicar tudo pela ótica do intelecto, mesmo as questões de cunho espiritual, e acabamos nos tornando inconvenientes nos ambientes socais, por não sabermos ouvir e aceitar opiniões diferentes das nossas. 

Enredados nessa confusão mental e emocional tramada pelo ego, esquecemo-nos de que em verdade não precisamos de nada, pois já temos o universo inteiro, dentro de nós. Não percebemos que a noção de um eu próprio, separado das coisas e pessoas que nos rodeiam, é exatamente a origem de toda ilusão, de todo o sofrimento. Onde existe sofrimento, aí existe uma idéia de um “eu” separado, aí existe um ego que deseja atingir algo na linha do tempo, aí existem desejos e a busca por um vir a ser. 

Não há nada de mais em utilizarmos as coisas e oportunidades que a vida material nos oferece. O problema está em fazermos delas uma extensão de nós mesmos, acreditando que elas são a realidade última da nossa existência. Isso gera sentimento de posse, e como tudo que nos rodeia é transitório, impermanente, acabamos por sofrer, quando o objeto do nosso desejo acaba, pois o apego oriundo do ego nos faz acreditar que perdemos parte de nós. Aí então sentimos dor. 

É por isso que o mestre Nan’in, em sua sabedoria profunda, aconselhava-nos a esvaziar a nossa mente, ou seja, passarmos a enxergar a vida como uma criança, que não possui nenhum pré-conceito ou idéia pré-concebida sobre nada. Talvez fosse isso o que o Mestre Jesus quisesse nos dizer quando afirmou: “Deixai que venham a mim as criancinhas e não as impeçais, porquanto o reino dos céus é para os que se lhes assemelham”. Se considerarmos que o reino dos céus é a natureza búdica, então, a percepção direta do Ser Interior somente virá quando transcendermos a natureza da mente prática, com todo seu conteúdo já estruturado de memória. 

O mestre Zen Shunryu Suzuki chamava isso de mente de principiante, isto é, olhar as coisas como de fato elas são, como se fossem vistas pela primeira vez, sem o pano de fundo de nossas memórias, sem o pré-julgamento de todo o conhecimento e cultura acumulados em nossa mente ao longo dessa e de outras vidas passadas. 

Sabemos que a realidade que nos rodeia é construída a partir da interpretação do cérebro físico/espiritual,  com base nos arquivos de nossas experiências anteriores,acumuladas através de estímulos exteriores captados pelos cinco sentidos físicos. Quando estamos diante de uma árvore, em frações de segundos o cérebro compara a silhueta do vegetal com seus registros e a resposta é imediata: aquilo é uma árvore. Aí começa a atividade mental. Passamos a conjecturar sobre o nome do vegetal, sua altura, espécie, textura e cor das folhas, formato dos galhos, sobre a emoção sentida na juventude quando demos o primeiro beijo do namoro debaixo da sua copa frondosa, sobre a quantidade de lenha que poderia produzir caso seja cortada por ocasião da chegada do inverno, etc. Toda essa reflexão febril encobre a percepção real da árvore. Perdemos a beleza do momento presente de apenas apreciarmos aquele ser vegetal, sem atribuição de nomes ou qualquer outro tipo de idéia ou pensamento comparativo. 

Portanto, esvaziar é aprender a morrer para toda a ilusão acumulada pela memória da mente prática, a mente superficial. Não é que essa memória seja ruim. Ela tem uma função de praticidade na vida material, que nos permite desempenhar as atividades do dia a dia. Porém, essa mesma memória não tem nenhuma utilidade do ponto de vista espiritual, e seu domínio sobre nós pode estreitar a percepção acerca da nossa realidade última. 

É por isso que grandes mestres como Buda e Krishnamurti nos alertaram sobre a necessidade da vacuidade, de esvaziarmos a mente para que seu conteúdo não restrinja a liberdade de sermos o que somos em essência: natureza búdica. 

É preciso alertar porém, que a reflexão realizada neste post também é racional, e como tal não nos levará à verdade última. Palavras, raciocínio e intelecto são apenas tentativas do ego em explicar a verdade. Verdade esta que cabe a cada um de nós experimentar por si mesmo. Opiniões e conclusões fazem parte de uma camada superficial da mente. Por isso, precisamos abrir mão dessa veia interpretativa da realidade, com base na memória, e irmos além, visualizando e aceitando as coisas como elas de fato são, a fim de mergulharmos na vacuidade do Ser. Para isso é necessário praticarmos o esvaziamento da mente por meio da plena atenção, não somente durante o zazen, mas em todos os instantes da nossa vida. 

Como então esvaziar a mente? Se decidirmos reprimir os pensamentos, não lograremos êxito, pois quando menos se espera eles surgem novamente e voltamos à estaca zero que é o ciclo vicioso do pensar. Uma atitude como essa pode ser interpretada como o próprio pensamento procurando reprimir os pensamentos. Temos aqui então o jogo do cachorro correndo atrás do rabo. Reprimir os pensamentos, portanto, não nos levará a lugar algum, e no máximo pode significar apenas que continuamos pensando. 

Existe um aspecto importante a ser considerado nesse contexto: - precisamos romper com o processo do vir a ser, ou seja, nos libertarmos da tendência ou marca mental de querermos construir um futuro a partir da experiência do passado. Este hábito pernicioso, repetido a milênios, não nos deixa ancorar no presente, e terminamos por viver uma vida ilusória, virtual, presos entre a recordação do passado e a ansiedade pelo futuro. 

Ao nos libertarmos da tendência mental pelo vir a ser passamos a experimentar a verdadeira espiritualidade: viver a plenitude do momento presente. Para isso é fundamental a prática da plena atenção. Esta é proposta da meditação. Tanto no zazen, quanto em qualquer outro tipo de meditação, utilizamos a respiração com base estabilizadora da mente, a fim de focarmos no momento presente, sem desejarmos alcançar nada. Focamos a atenção na respiração, e caso surjam pensamentos (e certamente surgirão...) a única ação indicada é apenas observá-los, deixando-os ir embora, sem emitirmos nenhum julgamento de valor.   

Neste estado meditativo, não existem objetivos, nem metas, nem busca por experiências espirituais, nem tampouco pela iluminação. Se assim praticarmos, o vazio surgirá naturalmente dentro de nós. Não o vazio niilista do aniquilamento total da consciência, mas, ao contrário, um vazio cheio de plenitude, sem personalismos, nem identidades, que nos torna uno com todas as coisas e seres. 

Tal prática produz silêncio na mente, fazendo-nos perceber que somos algo além da nossa identidade, do nosso eu, das nossas emoções, da nossa mente, dos nossos pensamentos. 

A partir daí, com a prática diária do zazen, passamos cada vez mais a perceber a atuação da natureza búdica em nosso cotidiano. Decisões adequadas em cada instante da nossa vida são tomadas com muito mais freqüência, justamente por que a percepção das coisas e seres já não se encontra mais turvada pelo conteúdo da memória, eivado de pensamentos, idéias e emoções próprias, geradas pelas idéias ilusórias de passado e futuro. 

Assim, pouco a pouco, vamos nos tornando libertos do vir a ser, até que um dia não mais seremos escravos dos automatismos gerados pela forma, sensações, percepções, vontade e consciência. Este o significado mais profundo da reta ação, que nasce da reta compreensão. 

Os frutos dessa prática saciam todos os desejos, inclusive o da auto-realização. Quando aprendermos a nos contentarmos com o que temos, no dizer do Apóstolo Paulo de Tarso, a vida se tornará então apenas um suave movimento. Viveremos nossa existência no mundo com dignidade, equilíbrio e felicidade, mas não mais seremos dominados por desejos a serem alcançados, por ansiedade, saudade, nostalgia, euforia, superioridade, vaidade, orgulho, raiva e rancor, que em verdade são alimentos do ego. Com isso, à medida que o estado de inanição do ego aumenta, a compaixão passa a brotar espontaneamente em cada passo da jornada, tornando-se o combustível das nossas vidas. A partir daí, tudo que fizermos será em benefício e felicidade de todos os seres. 

Assim, libertos da ilusão do sofrimento provocada pela Matrix do ego, apenas nos deixaremos levar pelo curso do suave movimento da vida, agora transformada em Graça que flui de todos os seres, inclusive de nós mesmos.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

O ar da Graça


De cócoras, 
à beira da estrada, 
vivia mordiscando dias.   

Os pés, 
antigas raízes, 
ainda sustentavam 
a finura do caule.   

O olhar presente
afagava a espessura das palavras, 
esticava a sombra da compreensão, 
sorvia a plenitude do vazio. 

Aprendera o idioma das águas, e 
com o rio, conversava fluindo, 
num misto de corredeira 
e moinho.   

Sabia soletrar 
o sábio tamborilar da chuva no telheiro, 
e na cachoeira do silêncio, 
doía-lhe o som das lágrimas 
derramadas pelo mundo inteiro.   

Do chão das horas, 
as mãos apanhavam
formigueiros de idéias, e 
construíam fornos de barro 
para assar a rotina diária.   

De tanto beber orvalho da manhã 
em folhas sedentas de sol, 
todas as vezes que chorava 
vertia estrelas.   

Conhecia o sabor amargo 
da mais valia dos homens, e 
por isso, embriagava-se 
com a doçura da sem valia.   

Para ele, 
0 que valia mesmo 
era sentir 
a pena da asa de um pintassilgo, 
fazendo escarcéu de alegria 
no ninho dos dedos. 

A natureza 
lhe roubara a lucidez infernal 
da urbanidade.   

Em troca, 
ganhara a loucura divina,
para alguns miragem,
de ser parte integrante 
da paisagem, 

de ser apenas 
um tecido atento,
feito com a percepção 
de cada momento,   

eternidade estendida
no varal do instante
que passa,  
tremulando livremente,
ao sabor do ar da Graça.

© Who