terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Esvaziar-se

Um professor universitário visitou Nan-in, o mestre zen, para perguntar sobre o zen. Contudo, em vez de ouvir o mestre, o professor se limitou a falar sobre as próprias idéias. Depois de ouvi-lo por um tempo, Nan-in serviu chá. Encheu a xícara do visitante e continuou a servir o chá. O líquido transbordou, encheu o pires, caiu nas calças do homem e no chão.

– Não está vendo que a xícara encheu? – explode o professor. – Não cabe mais nada!

– Isso mesmo. – responde calmamente Nan-in. – Tal como essa xícara, você está cheio de suas próprias idéias e opiniões. Como poderei mostrar-lhe o zen se você não esvaziar sua xícara primeiro?

Assim como o professor universitário do conto acima, vivemos cheios de teorias e explicações sobre a vida. Acreditamos que conhecer aquilo que está fora de nós nos levará ao encontro com a verdade, e por isso mesmo nos empenhamos em acumular conhecimento intelectual acerca do mundo exterior que nos cerca. 

Transformamos nossas vidas em um eterno questionar do intelecto, em uma busca febril por coisas que satisfaçam a nossa sede de desejos. Queremos respostas prontas e travamos intermináveis reflexões, que supostamente nos levarão à verdade. Passamos a vida correndo atrás de objetivos: - o curso superior, o mestrado, o doutorado, a casa própria, a família, o seguro de vida, o carro do ano, o posto mais alto no trabalho, a fama, o reconhecimento, a casa de campo, as férias no nordeste do Brasil, o natal na Europa, a viagem à Índia em busca de sabedoria, a boa aposentadoria, a herança para os filhos e netos, etc, etc. E ao final da vida percebemos que envidamos tanto esforço para chegar a lugar nenhum. Reconhecimento e valorização são para nós metas inadiáveis, e quando não as obtemos sofremos. 

Devido ao excesso de erudição e conhecimento acreditamos que somos os donos da verdade. Queremos explicar tudo pela ótica do intelecto, mesmo as questões de cunho espiritual, e acabamos nos tornando inconvenientes nos ambientes socais, por não sabermos ouvir e aceitar opiniões diferentes das nossas. 

Enredados nessa confusão mental e emocional tramada pelo ego, esquecemo-nos de que em verdade não precisamos de nada, pois já temos o universo inteiro, dentro de nós. Não percebemos que a noção de um eu próprio, separado das coisas e pessoas que nos rodeiam, é exatamente a origem de toda ilusão, de todo o sofrimento. Onde existe sofrimento, aí existe uma idéia de um “eu” separado, aí existe um ego que deseja atingir algo na linha do tempo, aí existem desejos e a busca por um vir a ser. 

Não há nada de mais em utilizarmos as coisas e oportunidades que a vida material nos oferece. O problema está em fazermos delas uma extensão de nós mesmos, acreditando que elas são a realidade última da nossa existência. Isso gera sentimento de posse, e como tudo que nos rodeia é transitório, impermanente, acabamos por sofrer, quando o objeto do nosso desejo acaba, pois o apego oriundo do ego nos faz acreditar que perdemos parte de nós. Aí então sentimos dor. 

É por isso que o mestre Nan’in, em sua sabedoria profunda, aconselhava-nos a esvaziar a nossa mente, ou seja, passarmos a enxergar a vida como uma criança, que não possui nenhum pré-conceito ou idéia pré-concebida sobre nada. Talvez fosse isso o que o Mestre Jesus quisesse nos dizer quando afirmou: “Deixai que venham a mim as criancinhas e não as impeçais, porquanto o reino dos céus é para os que se lhes assemelham”. Se considerarmos que o reino dos céus é a natureza búdica, então, a percepção direta do Ser Interior somente virá quando transcendermos a natureza da mente prática, com todo seu conteúdo já estruturado de memória. 

O mestre Zen Shunryu Suzuki chamava isso de mente de principiante, isto é, olhar as coisas como de fato elas são, como se fossem vistas pela primeira vez, sem o pano de fundo de nossas memórias, sem o pré-julgamento de todo o conhecimento e cultura acumulados em nossa mente ao longo dessa e de outras vidas passadas. 

Sabemos que a realidade que nos rodeia é construída a partir da interpretação do cérebro físico/espiritual,  com base nos arquivos de nossas experiências anteriores,acumuladas através de estímulos exteriores captados pelos cinco sentidos físicos. Quando estamos diante de uma árvore, em frações de segundos o cérebro compara a silhueta do vegetal com seus registros e a resposta é imediata: aquilo é uma árvore. Aí começa a atividade mental. Passamos a conjecturar sobre o nome do vegetal, sua altura, espécie, textura e cor das folhas, formato dos galhos, sobre a emoção sentida na juventude quando demos o primeiro beijo do namoro debaixo da sua copa frondosa, sobre a quantidade de lenha que poderia produzir caso seja cortada por ocasião da chegada do inverno, etc. Toda essa reflexão febril encobre a percepção real da árvore. Perdemos a beleza do momento presente de apenas apreciarmos aquele ser vegetal, sem atribuição de nomes ou qualquer outro tipo de idéia ou pensamento comparativo. 

Portanto, esvaziar é aprender a morrer para toda a ilusão acumulada pela memória da mente prática, a mente superficial. Não é que essa memória seja ruim. Ela tem uma função de praticidade na vida material, que nos permite desempenhar as atividades do dia a dia. Porém, essa mesma memória não tem nenhuma utilidade do ponto de vista espiritual, e seu domínio sobre nós pode estreitar a percepção acerca da nossa realidade última. 

É por isso que grandes mestres como Buda e Krishnamurti nos alertaram sobre a necessidade da vacuidade, de esvaziarmos a mente para que seu conteúdo não restrinja a liberdade de sermos o que somos em essência: natureza búdica. 

É preciso alertar porém, que a reflexão realizada neste post também é racional, e como tal não nos levará à verdade última. Palavras, raciocínio e intelecto são apenas tentativas do ego em explicar a verdade. Verdade esta que cabe a cada um de nós experimentar por si mesmo. Opiniões e conclusões fazem parte de uma camada superficial da mente. Por isso, precisamos abrir mão dessa veia interpretativa da realidade, com base na memória, e irmos além, visualizando e aceitando as coisas como elas de fato são, a fim de mergulharmos na vacuidade do Ser. Para isso é necessário praticarmos o esvaziamento da mente por meio da plena atenção, não somente durante o zazen, mas em todos os instantes da nossa vida. 

Como então esvaziar a mente? Se decidirmos reprimir os pensamentos, não lograremos êxito, pois quando menos se espera eles surgem novamente e voltamos à estaca zero que é o ciclo vicioso do pensar. Uma atitude como essa pode ser interpretada como o próprio pensamento procurando reprimir os pensamentos. Temos aqui então o jogo do cachorro correndo atrás do rabo. Reprimir os pensamentos, portanto, não nos levará a lugar algum, e no máximo pode significar apenas que continuamos pensando. 

Existe um aspecto importante a ser considerado nesse contexto: - precisamos romper com o processo do vir a ser, ou seja, nos libertarmos da tendência ou marca mental de querermos construir um futuro a partir da experiência do passado. Este hábito pernicioso, repetido a milênios, não nos deixa ancorar no presente, e terminamos por viver uma vida ilusória, virtual, presos entre a recordação do passado e a ansiedade pelo futuro. 

Ao nos libertarmos da tendência mental pelo vir a ser passamos a experimentar a verdadeira espiritualidade: viver a plenitude do momento presente. Para isso é fundamental a prática da plena atenção. Esta é proposta da meditação. Tanto no zazen, quanto em qualquer outro tipo de meditação, utilizamos a respiração com base estabilizadora da mente, a fim de focarmos no momento presente, sem desejarmos alcançar nada. Focamos a atenção na respiração, e caso surjam pensamentos (e certamente surgirão...) a única ação indicada é apenas observá-los, deixando-os ir embora, sem emitirmos nenhum julgamento de valor.   

Neste estado meditativo, não existem objetivos, nem metas, nem busca por experiências espirituais, nem tampouco pela iluminação. Se assim praticarmos, o vazio surgirá naturalmente dentro de nós. Não o vazio niilista do aniquilamento total da consciência, mas, ao contrário, um vazio cheio de plenitude, sem personalismos, nem identidades, que nos torna uno com todas as coisas e seres. 

Tal prática produz silêncio na mente, fazendo-nos perceber que somos algo além da nossa identidade, do nosso eu, das nossas emoções, da nossa mente, dos nossos pensamentos. 

A partir daí, com a prática diária do zazen, passamos cada vez mais a perceber a atuação da natureza búdica em nosso cotidiano. Decisões adequadas em cada instante da nossa vida são tomadas com muito mais freqüência, justamente por que a percepção das coisas e seres já não se encontra mais turvada pelo conteúdo da memória, eivado de pensamentos, idéias e emoções próprias, geradas pelas idéias ilusórias de passado e futuro. 

Assim, pouco a pouco, vamos nos tornando libertos do vir a ser, até que um dia não mais seremos escravos dos automatismos gerados pela forma, sensações, percepções, vontade e consciência. Este o significado mais profundo da reta ação, que nasce da reta compreensão. 

Os frutos dessa prática saciam todos os desejos, inclusive o da auto-realização. Quando aprendermos a nos contentarmos com o que temos, no dizer do Apóstolo Paulo de Tarso, a vida se tornará então apenas um suave movimento. Viveremos nossa existência no mundo com dignidade, equilíbrio e felicidade, mas não mais seremos dominados por desejos a serem alcançados, por ansiedade, saudade, nostalgia, euforia, superioridade, vaidade, orgulho, raiva e rancor, que em verdade são alimentos do ego. Com isso, à medida que o estado de inanição do ego aumenta, a compaixão passa a brotar espontaneamente em cada passo da jornada, tornando-se o combustível das nossas vidas. A partir daí, tudo que fizermos será em benefício e felicidade de todos os seres. 

Assim, libertos da ilusão do sofrimento provocada pela Matrix do ego, apenas nos deixaremos levar pelo curso do suave movimento da vida, agora transformada em Graça que flui de todos os seres, inclusive de nós mesmos.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

O ar da Graça


De cócoras, 
à beira da estrada, 
vivia mordiscando dias.   

Os pés, 
antigas raízes, 
ainda sustentavam 
a finura do caule.   

O olhar presente
afagava a espessura das palavras, 
esticava a sombra da compreensão, 
sorvia a plenitude do vazio. 

Aprendera o idioma das águas, e 
com o rio, conversava fluindo, 
num misto de corredeira 
e moinho.   

Sabia soletrar 
o sábio tamborilar da chuva no telheiro, 
e na cachoeira do silêncio, 
doía-lhe o som das lágrimas 
derramadas pelo mundo inteiro.   

Do chão das horas, 
as mãos apanhavam
formigueiros de idéias, e 
construíam fornos de barro 
para assar a rotina diária.   

De tanto beber orvalho da manhã 
em folhas sedentas de sol, 
todas as vezes que chorava 
vertia estrelas.   

Conhecia o sabor amargo 
da mais valia dos homens, e 
por isso, embriagava-se 
com a doçura da sem valia.   

Para ele, 
0 que valia mesmo 
era sentir 
a pena da asa de um pintassilgo, 
fazendo escarcéu de alegria 
no ninho dos dedos. 

A natureza 
lhe roubara a lucidez infernal 
da urbanidade.   

Em troca, 
ganhara a loucura divina,
para alguns miragem,
de ser parte integrante 
da paisagem, 

de ser apenas 
um tecido atento,
feito com a percepção 
de cada momento,   

eternidade estendida
no varal do instante
que passa,  
tremulando livremente,
ao sabor do ar da Graça.

© Who