domingo, 24 de maio de 2009

As quatro nobres verdades e a crise financeira mundial


Há dias tenho observado uma crescente tensão no rosto de um colega de trabalho. Contumaz investidor na bolsa de valores, a cada notícia de queda acentuada no valor das ações, a impaciência e a angústia se fazem notar não apenas em sua fala e atitudes, mas principalmente no seu semblante.

Assim como ele, milhões de pessoas no mundo inteiro sofrem os efeitos dessa “quebradeira” geral de instituições financeiras que se especializaram em ganhar com especulações e acabaram tornando-se vítimas de sua própria armadilha. Essa instabilidade geral nos mercados financeiros é a expressão daquilo que Zygmunt Bauman, sociólogo polonês radicado na Inglaterra, chama de Modernidade Líquida.

A liquidez que domina a vida moderna expressa a mais absoluta instabilidade que rege o mundo das formas físicas, onde tudo é transitório, efêmero, fugaz e impermanente, incluindo-se nesse rol, nos dias atuais, até mesmo as relações humanas. No caso da desvalorização de ações, organizações tidas como sólidas e duradouras desmancham-se da noite para o dia, tirando o sono de milhares de acionistas. O moderno computador de hoje torna-se ultrapassado daqui a poucos meses. O relacionamento que se iniciou, muitas vezes baseado nos atributos da beleza física, termina com o passar do tempo em razão do envelhecimento do corpo. Em um mesmo ano as montadoras lançam mais de um modelo do mesmo automóvel, frustrando os consumidores que adquirem um carro novo no início do ano. Troca-se de namorado(a), esposo(a) ou parceiro(a) como se troca de roupa, de acordo com a conveniência da situação ou em decorrência da perda do encanto do primeiro encontro.

O fenômeno é tão marcante e de tal forma seduz a personalidade humana, que provoca a exacerbação do consumismo, a níveis nunca antes vistos. Ninguém quer ficar fora da moda, do que é novo, mesmo que para isso tenha de trocar de carro duas vezes no mesmo ano, e continuar morando de aluguel.

O fato é que essa impermanência, habilmente urdida pelo ego nas tessituras da mente, e por isso mesmo estimulada pela ambição dos que detêm o poder no mundo, acaba gerando no ser humano um desejo incontrolável de sempre querer mais.

É assim, que a mente-ego funciona. Atrás de um desejo saciado, surge sempre um novo desejo, pronto para manter acesa a chama da insatisfação humana. E ao sabor das ondas desse feroz oceano de desejos, o homem sofre ao viver uma vida limitada, imposta pela tirania da ilusão provocada pelo ego. Em decorrência de tudo isso, abate-se sobre ele o efeito avassalador do sofrimento, da angústia, da depressão, da falta de sentido para a vida.

Existirá uma alternativa para esse estado de coisas? Estaremos condenados ao sofrimento ou existe uma possibilidade de sermos felizes, de fato?

Ao que parece sim. O Poder Criativo do Cosmos, sempre atento às necessidades humanas, de séculos em séculos, permite o surgimento na Terra de seres iluminados, que à maneira de estrelas-guia, brilham no céu da escura noite das vicissitudes humanas, indicando o rumo para a felicidade.

Um desses seres, o Senhor Buda, há mais de 2.500 anos atrás, na Índia antiga, para regozijo da esperança, apontou-nos um caminho de libertação do sofrimento provocado pela impermanência que permeia o mundo das formas.

Ele abordou a questão ensinando-nos quatro nobres passos ou verdades, cuja compreensão são imprescindíveis para quem deseja trilhar o caminho para libertação da dor. O primeiro deles é reconhecer que o sofrimento existe. Que significa isso?   Antes, cabe aqui uma pergunta de ordem ontológica: Quem realmente sofre? O ego ou o Ser? Quem é ao mesmo tempo causador e vítima desse sofrimento?

Buda percebeu que a vida, da forma como a experimentamos, ou seja, da maneira que a vivenciamos por meio da mente-ego, é frustrante, insegura, instável, e por isso mesmo gera sofrimento.  Quem pode dizer com honestidade quantas vezes ao dia se sente verdadeiramente feliz, independentemente de qualquer coisa, pessoa, fato, palavra, pensamento ou ação? Para Buda, o nível de existência que a maioria de nós vive é superficial, e nele dukkha reina soberanamente.

Dukkha é um termo normalmente traduzido como sofrimento, dor, mas quando era utilizado na língua Páli (língua falada à época do Buda) tinha também “o significado de rodas cujos eixos estavam fora dos centros” [1]. Assim, o homem atual vive uma vida deslocada, fora de centro. Existe algo de errado com a roda do nosso modus vivendis que  está descentrado por ter seu eixo focado na impermanência, ou seja, giramos a vida em torno de um pivô que não é real, e isso provoca fricção excessiva (conflitos internos), bloqueando o movimento (criatividade) da existência, o que acaba por gerar o calor da dor. 

Buda também identifica os seis momentos da vida em que esse deslocamento da existência se evidencia: 1- o trauma do nascimento que se torna a semente da ansiedade que brotará ao longo da existência, nos instantes em que nos sentimos ameaçados e somos submetidos a dolorosos sentimentos e descargas de excitação e sensações físicas; 2- a patologia da doença que desvela a realidade contundente da impermanência do corpo humano; 3 – a morbidez da decrepitude que gera todos os medos presentes nos anos finais da vida (medo da dependência financeira, medo de não ser amado, medo da doença, da dor, medo da decrepitude física e de se tornar dependente dos outros, medo de avaliarmos nossa vida como um fracasso); 4 – a fobia da morte  propiciando  o surgimento no homem de um quase terror, que acaba maculando a vida sadia; 5 – estar preso àquilo de que não se gosta, acarretando um martírio para o homem até o final da sua vida física (uma doença incurável, um defeito físico ou de caráter, etc.); 6 – estar separado daquilo que se ama.

Todas essas situações se configuram na Matrix que aprisiona o homem com os grilhões do sofrimento, e faz a dor tomar consistência quase palpável e real diante do equivocado olhar ilusório com que encaramos a vida. Assim, o primeiro nobre passo no caminho da libertação, nos mostra duas dimensões profundas do sofrimento.

Na primeira, compreendermos que por mais que se consiga o objeto do desejo, a felicidade ou prazer da conquista não perdura por muito tempo. Todo prazer acaba, deixando na boca aberta da rotina diária a sede por sua renovação. Assim, na dimensão da Matrix (mente-ego) sempre que o homem buscar nas coisas exteriores uma satisfação duradoura a impermanência vai assegurar a presença de dukkha, e com ela o sofrimento, mostrando-nos que estamos deslocados, fora do centro da harmonia universal.

A segunda dimensão revela que não apenas o mundo das aparências ou da experiência diária é impermanente, mas também nós, enquanto mentes-ego que estagiam nesse mundo, também somos. Esta é uma questão central na compreensão do caminho que liberta o homem do sofrimento. Buda nos mostra que aquilo que normalmente chamamos de nosso “eu”, que Martin Heidegger, filósofo existencialista alemão, chamava de ser-no-mundo, e que aqui denominamos mente-ego, em verdade não passa de um ente em constante mutação, impermanente, composto de cinco elementos que ele chamou de skandhas: - corpo, sensações, percepções, tendências de disposição e consciência. A única saída é desenvolvermos a compreensão correta de quem realmente somos: essências divinas eternas, unas com o Poder Criativo, e portanto imunes à impermanência do mundo das formas. 

Sabemos que a mente-ego, para existir, precisa se identificar com algo, e, portanto, em seu esforço pela identificação com os cinco skandhas que são impermanentes, efêmeros, transitórios, acaba não se realizando, e daí nasce a busca desenfreada pela satisfação dos desejos, origem de todo o sofrimento. Não percebemos que o mundo das formas é vazio, ou seja, não possui existência por si mesmo, sendo totalmente dependente da percepção do ego. 

Para Buda esses cinco componentes de apego que compõem a mente-ego também são dukkha, e o homem, ao se identificar e acreditar na existência real desses skandhas, permite que sua existência seja levada de roldão por um redemoinho de automatismos e condicionamentos, que poucos compreendem. Até que cesse a ignorância acerca de quem realmente somos, e descubramos o Ser interior, ficaremos privados da verdadeira alegria de viver.

Esse o problema dos investimentos nas bolsas de valores que trazem ciclos de expectativas e frustrações a milhões de pessoas no mundo inteiro. A tal crise financeira que origina o sobe e desce dessas bolsas nada mais é do que a mostra inequívoca da existência da impermanência. O problema não está nas condições estruturais de bancos e organizações financeiras, como nos querem fazer acreditar os economistas, mas sim na crença de que essas estruturas, inclusive o próprio mercado financeiro, são reais, sólidas. Até por que, partindo do pressuposto de que todo esse sistema mundial foi arquitetado pelo homem, pode-se perguntar: - Como pode o ego, por meio dos seus cinco agregados impermanentes (corpo, sensações, percepções, tendências de disposição e consciência), ser capaz de criar algo permanente, duradouro?

Neste ponto, surgem outras perguntas importantes: - Afinal de contas, quem é o investidor? Quem fica eufórico com o ganho? Quem fica frustrado, infeliz, deprimido com a perda? A saída é deixar de aplicar na bolsa, ou compreender de fato quem somos?

Compreender a diferença entre ego e Ser, e o fato de que somos algo permanente, que transcende os limites do ego pensante e do binomio tempo-espaço, que é imune às variações de humor da vida, tais como alegria e tristeza, é fundamental para recuperarmos o equilíbrio e a harmonia de viver.

E para isso, Buda nos diz que precisamos ir ao cerne do problema, ou seja, conhecer a causa dessa ferida de nascença, chamada dukkha, que tanto atormenta o ser humano, deslocando sua vida e roubando-lhe a felicidade. Este é o propósito do segundo nobre passo do caminho, que veremos no próximo post.


[1]  SMITH, Huston; NOVAK, Philip. Budismo – Uma Introdução Concisa. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix LTDA, 2ª edição, 2007, p.42.