quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Vivendo a plenitude de cada instante


        Neste último dia do ano, a maioria das pessoas no mundo inteiro busca dar sentido às suas vidas, por meio da esperança em um novo ano que se aproxima. Grande parte reflete sobre os acontecimentos passados, vivenciados ao longo do ano de 2008, na intenção de planejar as ações futuras para 2009. Sob a influência ilusória da mente pequena (mente-ego) e seus condicionamentos, analisamos o que fizemos de acordo com a visão dualística do certo e do errado, e estabelecemos metas para o ano vindouro.

Dessa maneira, entra ano e sai ano, vamos tocando nossas vidas, num automatismo inconsciente, buscando no passado inspiração para o futuro, e mesmo assim não logramos alcançar a felicidade. Ao final de cada ano, o resultado dessa infrutífera contabilidade de propósitos, traduz-se na percepção de insatisfação, incompletude, infelicidade, sofrimento.

Em verdade, poucos de nós nos lembramos de viver o momento presente, aqui e agora. Não percebemos que desenvolver a plena atenção em cada momento de nossas vidas, é a chave para nos libertarmos dessa ilusória realidade virtual criada pelo ego, e assim podermos ter a experiência direta da felicidade, que por sinal, sempre esteve presente em nós.

Alguns seres iluminados que se manifestaram na dimensão física do planeta Terra, experimentaram a unicidade da vida, superando a ilusão da impermanência que nos rodeia. Foram além da Matrix ilusória criada pela mente-ego, e dissolveram as dualidades da vida na plenitude do Ser.

Para isso, utilizaram-se da correta compreensão de que o homem, em essência, é perfeito, e, em sendo assim, o universo inteiro está contido nele. Portanto, não existem desejos, nem expectativas de ganho, pois tudo que está fora já existe no Ser.

Por meio, tanto da atitude quanto da compreensão correta, desenvolveram uma tecnologia eficiente e eficaz de observação de si mesmos, baseada na plena atenção em tudo que se faz, sem deixar que as recordações do passado ou a ansiedade pelo futuro perturbem a quietude da mente do observador.

Aplicando essas práticas em suas próprias vidas, estes seres transbordantes de compaixão, traçaram com suas pegadas luminosas um auspicioso caminho que, se trilhado com o esforço correto, conduz à percepção direta do Ser ao dissolver a ilusão da mente-ego e suas dicotomias, geradoras do sentimento de separatividade, base de todo o sofrimento humano.

Um desses seres, Sidarta Gautama, o Buda, estruturou seus ensinamentos a partir de quatro princípios por ele denominados de quatro nobres verdades que, mais do que crenças religiosas, expressam ações a serem realizadas pelo buscador: 1 - compreender de forma correta o sofrimento; 2 - por meio da compreensão correta abrir mão das origens do sofrimento; 3 - livre dos grilhões da origem do sofrimento, ou seja, do desejo ou anseio egoísta, alcançar a cessação do sofrimento; 4 - ao experimentar, mesmo que por um momento fugaz, a bem aventurança da ausência de sofrimento, decorrente da observância das três nobres verdades anteriores, torna-se necessário cultivar o nobre caminho óctuplo (visão correta, intenção correta, discurso correto, conduta correta, correto viver, esforço correto, correta atenção, concentração correta), verdadeiro programa de tratamento prescrito por Buda a fim de curarmos definitivamente a doença ilusória do sofrimento que assola o ser humano - a busca febril pela satisfação do ego.

Nos séculos que se seguiram após Buda, esse tratamento foi ministrado com uma roupagem religiosa denominada Budismo, mas, conseguiu manter sua proposta inicial de um caminho para libertação do sofrimento. Em verdade, assemelha-se muito mais a um método ou treinamento universal, a ser praticado de forma diária e constante, por qualquer buscador interessado na verdade, independente de crenças ou condicionamentos religiosos.

E um dos grandes expoentes na divulgação desse caminho foi o mestre zen japonês Eihei Dogen zenji (1220-1253). Ardoroso praticante e divulgador da shikantaza – a prática de viver plenamente cada momento – Dogen zenji dizia: “Quando não temos expectativa alguma, podemos ser nós mesmos. Essa é nossa maneira, nosso caminho, viver plenamente cada momento do tempo”. Para ele, o zazen – a prática de sermos nós mesmos – devia ocorrer em todos os instantes da vida cotidiana do buscador, e não apenas nos momentos em que nos sentamos para meditar.

Assim, nesta época de final de ano, em que dominam dolorosas reflexões do passado e incertas expectativas sobre o futuro, compartilho abaixo com vocês, o primeiro texto escrito pelo mestre Dogen zenji , o Fukanzazengi - uma recomendação universal sobre o Zazen - onde ele explica o significado do zazen e como praticá-lo.

Na procura incessante por uma saída da Matrix, este foi um dos textos que trouxeram quietude à mente e ao coração, transformando completamente minha compreensão sobre o caminho, a busca e o buscador.

Que em 2009 e em todos os anos vindouros, possam todos os seres se libertarem da ilusão do sofrimento, vivendo cada momento presente com plena atenção e correta compreensão.

Belo Horizonte, 31/12/2008.

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FUKANZAZENGI

Mestre Dogen

Tradução: Marcos Beltrão

http://www.marcosbeltrao.net/

Agora, quando traçamos a fonte do caminho, descobrimos que é universal, e que é absoluto. Torna-se desnecessário distinguir entre “prática” e “iluminação”. O ensinamento supremo é livre, então porque deveríamos estudar os meios de o atingir? O caminho está, não é necessário dizê-lo, muito longe da ilusão. Porque, então, ficar preocupado com os meios de eliminar a ilusão?

O caminho está completamente presente onde estás, então do que adiantam prática e iluminação? Contudo, o fato é que se houver a menor diferença, desde o começo, entre você e o caminho, o resultado será uma separação maior ainda que aquela entre o céu e a terra. Se surgir o menor pensamento dualista, perderás tua mente de Buda. Por exemplo, algumas pessoas estão orgulhosas de suas compreensões, e acham que estão ricamente agraciadas com a sabedoria do Buda. Crêem que já ganharam o caminho, iluminaram suas mentes, e ganharam o poder de tocar os céus. Crêem que estão perambulando no reino da iluminação. Mas o fato é que quase perderam o caminho absoluto, que está além da iluminação mesma.

Devemos prestar atenção de que mesmo o Buda Shakyamuni praticou Zazen durante seis anos. Dizem que Bodidharma teve que praticar zazen no Templo Shao-lin durante nove anos para poder transmitir a mente-de-Buda. Já que estes sábios de antanho eram tão diligentes, como podem os praticantes do dia presente deixarem de praticar o zazen? Devemos parar de correr atrás de palavras e letras e aprendermos a nos retirar e refletir sobre nós mesmos. Ao fazermos isso, nosso corpo e mente naturalmente cairá fora, e nossa natureza original de Buda aparecerá. Se desejarmos realizar a sabedoria do Buda, devemos começar a praticar imediatamente.

Ao fazermos zazen, é desejável que tenhamos um quarto calmo. Devemos ser moderados no comer, beber, deixando de lado todo relacionamento delusivo. Deixando tudo de lado, não pensemos nem no bem, nem no mal, nem no certo, nem no errado. Assim, tendo detido as várias funções da mente, desistamos mesmo da idéia de nos tornar Buda. Isso vale não apenas para o zazen, mas para todas as ações diárias.

Geralmente um acolchoado quadrado é colocado no chão onde sentamos, e em cima disso é colocada uma almofada redonda. É possível sentar, seja na posição de lótus, ou de meio-lótus. Na primeira, se coloca o pé direito na coxa esquerda, e em seguida se coloca o pé esquerdo na coxa direita. Nesta última, apenas se coloca o pé esquerdo na coxa direita. As roupas devem ser do tipo folgadas, mas bem arrumadas. Em seguida, coloca-se a mão direita no pé esquerdo, e a palma esquerda em cima da mão direita, com as pontas dos polegares se tocando de leve. Sentemo-nos perfeitamente eretos, nem inclinados para a esquerda, nem para a direita, nem para frente, nem para trás. Nossos ouvidos devem estar no mesmo plano que nossos ombros e os nossos narizes alinhados com o umbigo. A língua deve estar colocada contra o céu da boca, e os lábios e dentes firmemente cerrados. Com os olhos continuamente mantidos abertos, devemos respirar calmamente pelas narinas. Finalmente, tendo regulado corpo e mente desta forma, tomemos uma respiração profunda, movamos nosso corpo para frente e para trás, para a esquerda e para a direita, e então, devemos sentar firmemente quanto um rochedo. Pensemos no não-pensar. Como assim? Pensando além do pensar e do não-pensar. Esta a base mesma do zazen.

O zazen não é “meditação passo-a-passo”. Ao invés é tão somente a agradável e fácil prática do Buda, a realização da sabedoria do Buda. Eis que aparece a verdade, não mais havendo ilusão. Se isto chegarmos a entender, estaremos completamente livres, como um dragão que obteve água, ou um tigre reclinado na montanha. A lei suprema aparece sozinha, e eis que nos acharemos por completo, libertos de todo tipo de cansaço, bem como de qualquer tipo de confusão.

Ao terminar o zazen, devemos mover levemente o corpo, vagarosamente, e nos levantar calmamente. Não nos devemos levantar ou mover violentamente ao término do zazen.

Com a força do zazen, se torna possível transcender a diferença entre o “comum” e o “sagrado” e podemos ganhar a habilidade de morrer enquanto fazendo zazen ou enquanto de pé. Além do mais, é perfeitamente impossível para nossa mente discriminativa, compreender, seja como os Budas e Patriarcas procuravam exprimir a essência do Zen a seus discípulos, com o dedo, vara, agulha ou martelo, ou como eles passavam a iluminação com um hossu*, punho, bastão, ou grito. Nem pode este assunto ser captado através de poderes sobrenaturais, ou através de uma visão dualística da prática e iluminação. O zazen é a prática além dos mundos objetivos e subjetivos, além do pensamento discriminativo. Portanto, não se deve discriminar entre o inteligente e não-inteligente. Praticar o caminho de todo o coração, é isto mesmo, a iluminação em si. Não existe separação entre prática e iluminação, ou entre zazen e vida cotidiana.

Os Budas e Patriarcas, tanto neste país quanto na Índia e na China, preservaram cuidadosamente a mente de Buda e incentivaram assiduamente o treinamento Zen. Devemos, pois, nos devotarmos completa e exclusivamente, isto é, estarmos completamente absortos na prática do zazen. Apesar de ser dito que existem muitas formas de compreender o Budismo, eis que devemos fazer apenas o zazen, e nada mais. Não existe qualquer razão para deixarmos nosso assento de meditação e fazermos fúteis viagens a outros países para buscarmos isto. Se nosso primeiro passo estiver errado, imediatamente tropeçaremos.

Tivemos já a boa sorte de termos adquirido este precioso nascimento com o corpo humano, então tratemos de não mais desperdiçarmos nosso tempo à toa. Agora que sabemos o que é a coisa mais importante no Budismo, como possivelmente poderíamos ficar satisfeitos, ou contentes, com o mundo transiente? Nossos corpos são como o orvalho nas relvas, e nossas vidas como o lampejo do raio, que num só momento se vai embora.

Sinceros praticantes do Zen, não fiquem nem um pouco surpresos por um dragão de verdade, ou gastem muito tempo inutilmente apalpando apenas uma pequena parte do elefante. Se esforcem no caminho que indigita diretamente nossa natureza de Buda original. Respeitem aqueles que já ganharam o conhecimento completo, e que nada mais têm a fazer. Tornem-se uma só coisa com a sabedoria dos Budas e sucedam à iluminação dos Patriarcas. Eis que se fizermos o zazen durante certo tempo, isto tudo seremos capazes de realizar. A casa do tesouro então se abrirá automaticamente, e seremos capazes de gozá-la o quanto quisermos.

* Hossu: abanador de moscas ou insetos.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Liberdade



Estou em viagem de férias. Após dez dias de sol e calor nas praias de Natal/RN, enfrento agora a chuva e o frio em Belo Horizonte, a bela capital mineira.

Escrevo, enquanto lá fora as gotas de água, de forma simples e natural, realizam a função para a qual foram criadas.

A chuva, ao cair sobre a terra, não quer nada em troca.

Não busca alcançar algo e, por isso, não sofre com o anseio do ganho.

Não pensa nos benefícios da sua ação, nem tampouco nas coisas que serão beneficiadas por ela.

Não se acha diminuída por reverenciar homens e animais, lavando-lhes e refrescando-lhes os pés em forma de riachos e fontes.

Em sua expressão líquida, está presente em tudo e nem por isso se vangloria da Natureza.

Não deseja ser importante, nem tampouco especial.

Apenas cai de forma livre, sem condicionamentos, e graças a essa liberdade a vida brota sobre a terra...