domingo, 29 de novembro de 2009

Estar presente...



Confie no Coração

O caminho perfeito não conhece dificuldades ,

Mas se recusa a ter preferências;

Apenas quando é libertado do ódio e do amor

É que se revela totalmente, e sem disfarce.

Uma diferença de um décimo de centímetros,

E o céu e a terra são separados.

Se você deseja vê-lo diante dos seus olhos

Não tenha pensamentos fixos nem contra nem a favor.


Instigar aquilo de que você gosta contra aquilo de que você não gosta:

Essa é a dança da mente.

O Caminho é perfeito como a amplidão do espaço,

Sem nada a querer, sem nada supérfluo.

É devido às escolhas que faz

Que a sua Essência se perde de vista.


O Um não é nada além do Todo, o Todo nada além do Um.

Tome seu lugar e o resto se seguirá por si só.

Falei, mas foi em vão, pois o que podem dizer as palavras

Sobre as coisas que não têm ontem, amanhã ou hoje?


Seng Ts’an

(Extraído do livro “Budismo: Uma introdução Concisa – Huston Smith e Philip Novak)


Vivemos exatamente de forma contrária à última estrofe do poema acima. Queremos compreender tudo pelo intelecto, e para isso a mente-ego necessita de definições. No entanto, para vivenciarmos a resposta da pergunta que move a humanidade “Quem sou eu?” precisamos buscar o vazio.

A natureza da mente é o condicionamento. Exibimos por trás de cada atitude, palavra ou pensamento uma marca mental, que dá o tom ou as cores da nossa interpretação de mundo. Uma mesma situação pode ser compreendida de forma diferente por várias pessoas, de acordo com o influxo do pano de fundo ou dos condicionamentos que trazem em suas mentes.

Como exemplo, observe com atenção a figura abaixo:



O que você vê na imagem acima: Um hexágono? Um cubo com a face superior olhando-se de cima para baixo? Um cubo com a face inferior olhando-se de baixo para cima?

Pois, é... Note que mesmo havendo três possibilidades, ou seja, mesmo que consigamos visualizar as três figuras, existe sempre uma delas que teima em permanecer em nossa tela mental, condicionando nossa percepção, e dificultando a identificação das outras duas.

Essa é uma ação típica da mente-ego que interpreta as situações no mundo sensível de acordo com sua conveniência, condicionando nossas vidas sem que, na maioria das vezes, tenhamos consciência disso. Esse viés utilizado pelo ego para interpretar o mundo de acordo com suas concepções tem origem na própria estrutura egóica, herdada das memórias acumuladas (pensamentos e emoções) por meio das experiências do ser na dimensão do sensível.

Como então colocarmos os pés no Caminho Perfeito de que nos fala o poema do Mestre Seng Ts’na, caminho este totalmente livre dos condicionamentos?

O segredo é percebermos que o vazio está presente em todas as coisas. Não aquela idéia de vazio deduzida pelo intelecto, que nada mais é do que a negação de algo ou da própria existência.

A vacuidade aqui pretendida não pode ser definida pela mente-ego, pois se constitui na própria natureza incondicionada do Ser, ou seja, a natureza búdica, livre de marcas mentais, por meio da qual, percebemos as coisas como elas são.

Este caminho perfeito, de que nos fala Seng Ts’na, é o momento presente, o agora. Estar presente significa a própria conexão entre o Ser e o mundo sensível, isto é, entre a Testemunha de tudo e o Tudo. A simples consciência desse fato é capaz de transformar a Testemunha e o Tudo em um só.

Em razão da sua natureza condicionada, a mente fraciona a realidade exterior em sujeito e objeto, dando-nos a falsa impressão de que existimos separados do mundo sensível. E neste contexto, a linha temporal na qual se baseia a existência física, reforça esse processo de distinção, na medida em que as recordações da memória e as imagens criadas pela imaginação que projeta o amanhã são instrumentos desse condicionamento, utilizados pela mente para criar a ilusão de que objetos e pessoas estão fora de nós.

Portanto, viver a plenitude do agora é estar liberto da memória (passado) e do vir-a-ser (futuro). Quando vivemos nossa vida plenamente ancorados no instante presente, nos libertamos de forma consciente de dois tipos de condicionamentos que bloqueiam nossa percepção acerca das coisas como elas realmente são: 1) a repetição de padrões mentais que se estabelecem automaticamente em razão de comparações quase instantâneas realizadas pela mente-ego entre aquilo que experimentamos no agora e recordações de situações semelhantes vivenciadas no passado; 2) sobreposição de imagens projetadas para o futuro sobre nossa compreensão acerca da situação presente, geradas pela ansiedade da mente-ego, que não gosta de sentir insegurança quanto ao porvir, e por isso utiliza-se da imaginação para garantir a satisfação dos seus desejos.

Assim, estar presente é apenas ser, sem julgamentos ou comparações, sem certo ou errado, nem bonito, nem feio, nem alto, nem baixo. É na plenitude do agora que todos os opostos, toda dicotomia se complementa, e podemos então perceber a unidade.

Essa prática no Zen se chama Shikantaza, ou seja, simplesmente estar presente, simplesmente ser, simplesmente fluir na eternidade do agora.

Os condicionamentos e as marcas mentais têm sua origem na memória e na ansiedade do vir-a-ser. Por isso, viver cada instante com plena atenção é ser livre, pois o momento presente em si, sem as limitações temporais do passado e do futuro, é vazio de marcas mentais e condicionamentos. Este é o sentido verdadeiro de vacuidade e também de liberdade.

Logo, se estou plenamente focado no agora, sem deixar que a mente vagueie pelos labirintos ilusórios das recordações e das previsões, minha percepção acerca de determinada situação não difere mais da percepção do outro, pois não há mais a interposição do viés do ego entre nós. O momento presente liberta da separatividade.

No agora, não me encontro mais separado do outro, pois não existe mais a minha compreensão e a compreensão do outro. Sem o pano de fundo da mente-ego, as coisas são como elas são, e, portanto, o mundo sensível não depende mais das opiniões do ego para ser compreendido.

Por isso, aquele que vive no instante presente torna-se imune à opinião alheia, que não mais o atinge, nem o instiga, nem tampouco o aborrece. Para ele, já não há mais sentido em querer convencer ou impor ao outro a sua opinião, pois sua antiga compreensão das coisas, a compreensão da mente-ego, da qual ele extraía opiniões intelectuais e separatistas sobre o mundo sensível, já não mais existe.

E se opiniões e definições intelectivas já não são mais importantes, então não existem mais diferenças entre ele e o outro. Surge desse fato um sentimento natural de aceitação do outro, fruto da compaixão, aqui compreendida como a percepção que nasce da compreensão de que temos a mesma origem, o mesmo gérmen, a mesma semente.

Portanto, viver a plenitude do agora faz com que resgatemos nosso sentimento mais profundo de humanidade, respeitando e acima de tudo reconhecendo o outro.

Estar plenamente imerso no presente é, pois, o caminho perfeito. Trilhar esse caminho é romper os grilhões da ilusão da separatividade criada pelos condicionamentos da mente-ego. E viver sem condicionamentos é realizar a liberdade de ser uno com tudo e todos.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Continuação: As quatro nobres verdades e a crise financeira mundial


No post anterior falamos da segunda nobre verdade, que nos revela a causa do deslocamento da vida: - o anseio egoísta. No exemplo utilizado, o desejo do ego em querer sempre mais, faz com que pessoas invistam tudo o que têm no mercado de ações. Como o objeto do desejo torna-se uma extensão do ego, cada ação se transforma em uma parte intrínseca do investidor. Ao sobrevir a crise financeira mundial, com a conseqüente queda nas cotações das bolsas de valores, foi como se cada pessoa perdesse um pedaço de si mesma, o que acarretou a dor e o sofrimento da perda.

É aceitável então pressupor que ao superarmos o anseio egoísta, o eixo da nossa existência deixa de estar deslocado em relação à harmonia do universo, e com isso o sofrimento cessa. É disso que trata a Terceira nobre verdade: - a possibilidade de cessação do sofrimento, por meio da superação do desejo.

Esse encadeamento de verdades proposto pelo Senhor Buda é extraordinariamente simples e ao mesmo tempo profundo.

Ao explicar que a compreensão do sofrimento (1ª nobre verdade) permite identificar o anseio egoísta como sua causa (2ª nobre verdade), Buda apresenta-nos o sofrimento como o dilema existencial do ser humano, com o qual viemos nos defrontando, vida após vida.

Por outro lado, ele afirma que é possível cessar o sofrimento por meio da superação do anseio egoísta, e com isso, mostra-nos que existe uma saída, uma solução para esse dilema. De acordo com os ensinamentos do Budismo a cessação do sofrimento (3ª nobre verdade) é alcançada quando trilhamos o caminho óctuplo (4ª nobre verdade, sobre a qual falaremos no próximo post).

Neste sentido, as quatro nobres verdades do Budismo se assemelham a um medicamento para cura do sofrimento, e Buda as apresenta como se fosse um médico que faz um diagnóstico, emite um prognóstico e prescreve um tratamento.

Ao diagnosticar a condição humana, ele reconhece a natureza existencial do sofrimento (1ª nobre verdade), em razão da impermanência que se faz presente em tudo que é exterior ao Ser. Ainda nesta etapa, examina os meandros do sofrimento, e descobre suas origens n desejo centrado em si mesmo (2ª nobre verdade).

A seguir, Buda emite então um prognóstico, ao concluir que o sofrimento pode cessar (3ª nobre verdade), e, que existe, portanto, possibilidade de cura. Qualquer pessoa, independente de raça, credo ou condição social, pode promover a cessação do sofrimento mediante a superação do anseio egoísta.

Finalmente, ele prescreve um tratamento eficiente e eficaz por meio de um método de viver (4ª nobre verdade) chamado caminho óctuplo, cujo objetivo é devolver-nos a compreensão daquilo que de fato somos: - perfeição absoluta.

Assim, quando superamos o desejo, mesmo que momentaneamente, o sofrimento naquele instante acaba, e tocamos a dimensão atemporal do Ser, o aqui e agora, onde não existe início, meio e fim, nem tampouco passado e futuro.

A cessação momentânea do desejo significa o vislumbre de uma abertura fugaz no céu nebuloso do sofrimento humano, por onde penetram os raios do Ser Interior, clarificando coisas e situações, produzindo em nós o insight da compreensão direta daquilo que realmente somos.

Neste instante, já não existem mais dúvidas provocadas pela comparação e recordação das lembranças e pela expectativa e angústia quanto ao futuro. Vemos as coisas de fato como elas são, sem nos deixar influenciar pelo pano de fundo das experiências acumuladas em nossa memória e pela ansiedade de um futuro criado pela imaginação do ego que busca de todas as formas perpetuar seu domínio secular sobre nós.

Daí a importância da prática diária da plena atenção, sejam pelo zazen ou qualquer outro tipo de meditação que aquiete a mente, pois esses momentos de plenitude, pouco a pouco vão se dilatando, até que o ego seja completamente absorvido pelo Ser e alcancemos aquilo que alguns chamam de iluminação, nirvana, samadhi, ou seja, a compreensão direta Daquilo que realmente somos.

Nessa trajetória, é importante compreendermos que o ego (nossa estrutura mental, intelectual e emocional) não gosta da impermanência ou da transitoriedade de coisas e situações, pois esse tipo de percepção nele provoca insegurança e medo com relação ao futuro.

É esse medo e insegurança que nos levam à preocupação excessiva com a aposentadoria, induzindo-nos a passar boa parte da existência envidando esforços para adquirir mais e mais, com a ilusão de que somente assim teremos um futuro garantido para nós e para aqueles a quem amamos. Daí sermos levados a buscar o ganho fácil por meio da aplicação nas bolsas de valores, loterias, etc. Aplicar na bolsa ou jogar na loteria em si não é um ato condenável. O problema é acreditarmos que essas ações são reais, e que seus efeitos ou ganhos nos trarão felicidade e realização. Esse é um entendimento típico do ego que não consegue perceber que as coisas exteriores são impermanentes. Compreender a vacuidade das coisas é o trampolim de onde nos projetamos para o mergulho no Ser, sem medo de viver o presente, nem tampouco insegurança quanto ao futuro. A crença de que o passado e o futuro são reais é um dos grandes obstáculos a esse salto, pois perdemos o foco no presente.

A expectativa futura é ilusória porque quando chega o futuro, o ego já criou outras necessidades diferentes daquelas que projetamos, mesmo que os objetos de desejo tenham sido conquistados. E assim, seguimos perdidos, sempre insatisfeitos, inseguros e com medo, navegando no mar da existência ao sabor das ondas da impermanência.

A presença do desejo ou anseio egoísta nos torna incapazes de perceber que qualquer que seja o resultado do investimento na bolsa de valores, ou qualquer outra ação semelhante, nós sempre continuaremos insatisfeitos e inseguros.

O problema aqui não está em ter, mas em ser. Acreditar que temos ou possuímos algo gera deslocamento do eixo da roda da vida, pois essa é uma idéia típica do anseio egoísta. É sobre isso que Buda nos convida a refletir: - precisamos compreender as coisas como elas são. E para que alcancemos essa percepção, o conceito de vacuidade torna-se fundamental.

Nossas ações devem ser precedidas pelo esvaziamento da intenção egoísta, que busca sempre a realização pessoal em todo pensamento, palavra ou atitude. No Taoísmo, este é o verdadeiro sentido do Wuwei, isto é, da ação através da não-ação. Não-ação absolutamente não significa passividade, ociosidade. Ao contrário, o não - agir é ativo, dinâmico, pois é vazio dos desejos egoístas que limitam a liberdade e a criatividade do homem. Não – agir implica em fluir de acordo com cada circunstância. É um viver específico para cada momento, que nos auxilia a manter o foco no instante presente, sem se deixar aprisionar pelas impressões da memória ou pela expectativa futura.

Para o ego, a vida resume-se a uma linha temporal que liga o passado ao futuro, e que tem numa extremidade o nascimento físico e na outra a morte. Essa imagem é a própria personificação do sofrimento, pois passamos a maior parte das nossas vidas presos à nostalgia ou tristeza pelas recordações do passado e à angústia ou aflição pela expectativa do futuro. E o anseio egoísta, causa do sofrimento, nasce exatamente dessa ilusão temporal, onde a mente cria necessidades impermanentes com base em fatos passados, projetando-as como segurança para um futuro ilusório.

Se outrora tivemos e hoje não temos mais, sofremos. Se nunca tivemos, e sonhamos em ter amanhã, também sofremos. Se hoje temos e queremos mais, novamente somos confrontados pelo sofrimento. É assim que a mente-ego flutua no mar revolto desse lapso temporal que chamamos vida. Sem perceber que a chave para libertar-se é a plena atenção no agora, o ego entrega-se ao sofrimento, por não perceber a impermanência em tudo aquilo que o rodeia, e de onde ele espera inutilmente obter felicidade.

A terceira nobre verdade, em complemento às duas nobres verdades anteriores, ao anunciar a cessação do sofrimento, indica-nos a plena atenção no agora, como forma de superarmos o anseio egoísta. Quando vivemos a plenitude do presente, não somos mais movidos por intenções ou desejos do ego, nascidos das recordações do passado ou do anseio pelo futuro.

Segundo essa concepção, a vida deixa de existir como uma estrada que liga nosso nascimento a um destino, e passa a significar a própria caminhada. O segredo da cessação do sofrimento é viver a plenitude de cada passo da jornada, dia a dia, instante a instante, percebendo as coisas como de fato elas são, sem deixar que nossa compreensão seja turvada pelas lembranças ou pela expectativa do vir a ser.

Se adotarmos essa prática de viver que privilegia mais o ser do que o ter, cultivando a quietude de uma vida simples, dia virá em que compreenderemos num só átimo o sentido da vacuidade, e logo todos os desejos egoístas desaparecerão, pois serão satisfeitos ao perceberemos que tudo está em nós, que somos o próprio universo. Nesse instante, finalmente compreenderemos, e experimentaremos cada gota divina das verdades vertidas pelo Sutra do Coração:

Ó Shariputra, a forma é vacuidade, a vacuidade é a forma. A forma não é outra senão a vacuidade, a vacuidade não é outra senão a forma. As sensações, percepções, vontade e consciência também são assim.

Ó Shariputra, todos os fenômenos são vacuidade. Não aparecem nem desaparecem, não são impuros nem puros, não crescem nem diminuem. Portanto, na vacuidade não há forma, sensação, percepção, vontade, consciência; não há olho, ouvido, nariz, língua, corpo, mente; não há cor, som, odor, sabor, tato, fenômeno; não há [reino dos sentidos, desde] o reino da visão até o reino da mente; não há [elos da existência dependente, desde] a ignorância e o fim da ignorância até a velhice-e-morte e a fim da velhice-e-morte; não há [as Verdades Nobres sobre] o Sofrimento, a Origem, a Cessação, o Caminho; não há sabedoria, nem ganho, nenhum ganho.

Sem o que ganhar, o Bodhisattva permanece na perfeição da sabedoria e não tem obstáculos em sua mente. Sem obstáculos e, portanto, sem medo, ele fica bem distante das delusões. Isto é o nirvana.

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BATCHELOR, S. Budismo sem crenças: a consciência do despertar. São Paulo: Palas Athena, 2005.

SMITH, H.; NOVAK, P. Budismo: uma introdução concisa. São Paulo: Cultrix, 2007.