sábado, 19 de setembro de 2009

Continuação: As quatro nobres verdades e a crise financeira mundial


No post anterior, vimos que a impermanência do mundo produz sofrimento, na medida em que pessoas e coisas fora de nós, às quais nos apegamos, são temporárias, transitórias, passageiras. O sentimento de posse ou apego nos faz considerar o objeto de desejo como parte de nós. Assim, quando esse objeto de alguma forma se extingue, sobrevém o sentimento de perda, que abre em nós as feridas da dor, do sofrimento.

Compreender de forma correta a causa dessas feridas é fundamental ao homem em sua busca pela libertação. É disso que trata a Segunda Nobre Verdade. Segundo Buda, a causa do deslocamento da vida (dukkha) é tanha, palavra do idioma páli, normalmente traduzida por “desejo”.

Porém, é preciso compreender que tanha trata de um tipo específico de desejo: - o desejo de realização pessoal. Quando somos altruístas, e pensamos de forma espontânea, mais nos outros do que em nós mesmos, tanha se mantém distante, pois, esse tipo de atitude enfraquece o ego. É bem verdade que ser desapegado exige de nós percepção profunda acerca daquilo que move nossas ações.

Muitas vezes, envolvemo-nos em ações filantrópicas, que em verdade escondem outras motivações que não apenas a felicidade de servir, como por exemplo, o desejo, ainda que sutil (mas ainda assim desejo...), de ser reconhecido. O mesmo ocorre com o desejo de iluminação, que muitas vezes esconde a satisfação ilusória de se tornar superior, um instrumento de auxílio à humanidade. Isso significa apenas uma coisa: o ego está mais presente do que nunca, e ao agirmos assim, tanha, a súdita mais obediente do ego, nos leva de roldão de volta aos grilhões do sofrimento, retirando-nos da dimensão da liberdade, onde se age através da não-ação, isto é, onde não nutrimos motivos, expectativas ou desejo de alcançar o que quer que seja como fruto das nossas ações (o wuwei do taoísmo).

No fundo, tanha é fruto da nossa miopia espiritual, em acreditar que estamos separados das pessoas e coisas que nos rodeiam. Não percebemos que essa miopia é causada pela ilusão de termos uma identidade individual, traduzida em um corpo, com uma árvore genealógica, nome, família, empregado na organização tal, que gosta disso ou daquilo, que tem essa ou aquela preferência.

Tanha, pois, consiste de todas “aquelas inclinações que tendem a continuar ou aumentar a falsa percepção de uma existência separada do objeto do desejo; de fato, Tanha sintetiza todas as formas de egoísmo; a essência à custa da qual o próprio desejo se realiza. Sendo a existência una, tudo o que tende a separar um aspecto do outro causa sofrimento à unidade que, quase sempre, inconscientemente, trabalha contra essa lei. Nossa tarefa para com nossos semelhantes é compreendê-los como extensões de nós mesmos – facetas semelhantes da mesma realidade” *

Se compreendêssemos a verdade de que todo o universo exterior está contido em nós mesmos; que somos o próprio universo, que admira a si mesmo por nosso intermédio, certamente não mais haveria objetos de desejo, e conseqüentemente desejo, pois compreenderíamos que tudo já está presente em nossa natureza última, em nosso ser interior, em nossa natureza búdica ou em nossa essência divina.

No caso da crise financeira mundial, é justamente o desejo de querer sempre mais e mais, com vistas a alcançar a tão desejada realização pessoal, mais comumente conhecida como sucesso na vida, que se transforma em causa do sofrimento de tantas pessoas, como aquele meu colega de trabalho, citado no post anterior. O sentimento de posse e apego ao dinheiro acabou produzindo dor e sofrimento nos acionistas das bolsas de valores, quando essas despencaram, e o dinheiro aplicado se perdeu. Essa perda fez os acionistas sofrerem, como se uma parte deles tivesse sido arrancada.

No âmbito mundial, isso se repercutiu em todos os países, mostrando que tudo está interligado na ordem que preside a existência física. Por sinal, este sentimento de separatividade tem sido um dos grandes equívocos das nações e governos, conforme vem demonstrando a crise financeira mundial e também os desacertos de ordem ecológica que tanto têm assolado o planeta, pondo em risco o equilíbrio da natureza.

Portanto, a Segunda Nobre Verdade nos indica que para eliminarmos o sofrimento, é preciso abrir mão do desejo. E como fazer isso?

Antes de tudo, é preciso cultivar a compreensão correta acerca do que são os desejos e os estados mentais que eles produzem. Sempre que surge um desejo, a reação habitual do ego é de negação ou indulgência. Isso está de tal forma, arraigado no psiquismo humano, que o indivíduo é levado de roldão pela situação, e não consegue perceber no bojo dos estados mentais provocados pelo desejo a fala do Buda dizendo: “Abra mão!

Desejo: "Vou aplicar na bolsa de valores". Estados mentais associados: “Se ganhar comprarei aquele carro importado que há tanto tempo desejo”. “E se eu perder? Não... Não quero nem pensar nisso... Isso não vai acontecer comigo... Conheço profundamente o mercado de ações, e tenho certeza de que tudo vai dar certo...Além do mais, não se consigo mais viver sem aquele carrão..."

Quando surge um desejo, é assim que age o ego, negando ou sendo indulgente com a situação. Assim, abrir mão não significa um eufemismo que tem por objetivo reprimir o desejo. Aliás, reprimir desejos não é um bom caminho para acabar com eles, pois o simples pensamento ou atitude de querer reprimi-los já é um desejo.

Portanto, abrir mão implica, antes de tudo, compreender, com aceitação calma e clara atenção, aquilo que está acontecendo. Um aspecto que deve ser considerado é o fato de que, embora o desejo (segunda verdade) possa ser origem ou causa do sofrimento (primeira verdade), isso não significa absolutamente que essas duas verdades sejam coisas separadas. Assim como o cultivo do desejo em nossas vidas cristaliza o sofrimento, e faz surgir a dor, da mesma forma, a atenta e correta observação e compreensão desse movimento causal (desejo → sofrimento) nos faz abrir mão espontaneamente do desejo, na medida em que ele se extingue por si só.

Dessa maneira, abrir mão de um desejo não é rejeitá-lo ou tentar negá-lo por meio do bloqueio dos pensamentos ou das emoções. Ao contrário, é permitir que ele seja o que de fato é: - um estado mental contingente, transitório, efêmero, que se extinguirá da mesma forma que surgiu. Ao invés de tentarmos nos livrar dos desejos à força é importante notarmos que é da natureza do desejo perder sua intensidade até extinguir-se, quando é atentamente observado. Isso somente ocorre quando observamos as coisas de fato como elas são. Para isso é fundamental vivermos com nossa atenção voltada para o agora, não somente ao longo do zazen (meditação zen), mas durante todo o dia.

É por isso que sabedorias orientais como o Budismo, o Taoísmo e o Hinduísmo enfatizam tanto a importância de estarmos plenamente focados no momento presente. No budismo zen, Shikantaza (estar presente, simplesmente ser) se pratica no agora, e não nas lembranças do passado (que já foi presente) ou na expectativa ou ansiedade do futuro (que será presente). Viver a plenitude do momento presente é o mesmo que dizer que o Observador, a Testemunha de tudo (a Natureza búdica) ao viver o agora, desfaz a ilusão do ego que necessita de um início, meio e fim para existir. O ego se alimenta da memória e da ansiedade ou expectativa pelo futuro. Quando vivemos o agora, interrompemos o fluxo do vir a ser, e o ego se enfraquece. A experiência do agora nos permite passar a ver as coisas sem a interferência do pano de fundo da memória e da expectativa pelo amanhã, ou seja, nos dá condições de viver no domínio atemporal do Ser.

No fundo, quando no identificamos com o desejo, (quero isso, não quero aquilo), estamos agarrando com mais força a separatividade, pois reforçamos como verdadeira a crença ilusória de que existe algo fora de nós. Ao agirmos assim, surge, de forma inevitável, o medo da perda, que acaba intensificando a resistência oposta pelo movimento natural da vida àqueles que lhe são contrários. Isso ocorre por que o fluxo natural da existência, essência da nossa própria natureza búdica, não coaduna com a ilusão do ego, e age no sentido de restabelecer a harmonia do cosmos. Esse o sentido mais profundo do carma.

Deduz-se daí que a experiência do momento presente, transformando a vida num continuum, onde um agora se sucede ao outro, sem interferências do passado e do futuro, estados mentais criados pelo ego, também nos ensina a viver em consonância com o fluxo natural da vida, evitando as resistências e reações iguais e contrárias que o universo exerce naqueles que contrariam sua harmonia, o que significa, em última instância, libertar-se dos processos cármicos. Os chineses com o Wuwei (ação por meio da não-ação) e os hindus com os princípios da Karma Yoga, já haviam percebido o poder libertador existente no ato de apenas fluirmos com a vida, sem deixarmos que o ego ofereça resistências ao seu influxo.

Se não exercitarmos essa compreensão o desejo continuará seu caminho, de um simples estado mental até se tornar uma compulsão. Assim, se o passo inicial do abrir mão é termos a reta compreensão acerca do desejo, seu próximo desafio está ligado ao reto agir, que implica na tomada de atitude, na decisão firme de observarmos atentamente o desejo, de forma a evitar que as reações habituais do ego na rotina diária, turvem nossa percepção, e o consolidem em nossa mente.

Portanto, por meio da compreensão da segunda nobre verdade do budismo, pode-se inferir que a observação atenta do desejo, no instante em que ele surge, permite-nos enxergar claramente a natureza passageira, duvidosa e contingente da realidade tridimensional em que estagiamos. O desejo sobrevive apenas na dimensão temporal, e seu nascimento presume uma ação do indivíduo, que busca na memória (passado) algum material de comparação com determinada situação por ele experienciada no agora. Se a posse do objeto de comparação indicar ao ego a possibilidade de maior segurança no vir a ser (futuro), surge imediatamente o impulso de conquistar tal objeto.

No fundo todo desejo visa dar segurança ao ego, que sabe da sua transitoriedade, da sua impermanência, e por isso mesmo quer, por meio da prática de sempre querer mais, garantir seu controle em nossas vidas ao longo de uma linha de tempo, que para o ego é real. A reencarnação na dimensão física parece ser exatamente essa linha de tempo, na qual o ego se manifesta, e cria os estados mentais de início, meio e fim; nascimento, vida e morte; passado, presente e futuro. A iluminação, isto é, a percepção do Ser acerca da sua própria perfeição é a via de libertação para a ilusão temporal da reencarnação. Iluminado, o ser passa a viver na dimensão atemporal da essência divina, onde tudo é uno; onde, nos disse Jesus, Ele e o Pai são um.

Jesus também já nos alertava sobre a importância do agora, quando disse: “Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã se preocupará consigo mesmo” (Mt. 6,34). Paulo de Tarso também dizia: - “Aprendi a contentar-me com o que tenho” (Filipenses, 4:11). Esses preciosos ensinamentos cristãos, quando analisados no mundo atual, onde a obtenção de coisas materiais e a previdência quanto ao futuro são interpretadas como grandes virtudes do homem fadado ao sucesso, podem parecer orientações estranhas e inadequadas. No entanto, essas palavras escondem a chave para compreensão perfeita acerca da segunda nobre verdade, cuja prática pode levar o homem a abrir mão dos desejos, e fazer cessar o sofrimento (terceira nobre verdade).

Exercitar a plenitude do agora e ao mesmo tempo compreender que já temos tudo de que necessitamos, são insights preciosos para extinguirmos os desejos. Aquele que vive em plena liberdade, focado no momento presente, retira o dharma dos livros e cânones budistas, e o coloca em sua prática diária.

Se quisermos compreender a terceira nobre verdade (a cessação do sofrimento) e atingirmos a dimensão atemporal do Ser precisamos, de fato, aprender, em nossa rotina diária, a abrir mão dos desejos, ou seja, a cultivarmos a reta compreensão de que eles são apenas uma espessa neblina criada pelo ego, que logo se esvai sob o influxo do sol da natureza búdica, que habita em cada um de nós.


* Budismo: Uma introdução Concisa - SMITH, Houston, NOVAK, Philip

Budismo sem crenças: A consciência do despertar - BATCHELOR, Stephen