É aceitável então pressupor que ao superarmos o anseio egoísta, o eixo da nossa existência deixa de estar deslocado em relação à harmonia do universo, e com isso o sofrimento cessa. É disso que trata a Terceira nobre verdade: - a possibilidade de cessação do sofrimento, por meio da superação do desejo.
Esse encadeamento de verdades proposto pelo Senhor Buda é extraordinariamente simples e ao mesmo tempo profundo.
Ao explicar que a compreensão do sofrimento (1ª nobre verdade) permite identificar o anseio egoísta como sua causa (2ª nobre verdade), Buda apresenta-nos o sofrimento como o dilema existencial do ser humano, com o qual viemos nos defrontando, vida após vida.
Por outro lado, ele afirma que é possível cessar o sofrimento por meio da superação do anseio egoísta, e com isso, mostra-nos que existe uma saída, uma solução para esse dilema. De acordo com os ensinamentos do Budismo a cessação do sofrimento (3ª nobre verdade) é alcançada quando trilhamos o caminho óctuplo (4ª nobre verdade, sobre a qual falaremos no próximo post).
Neste sentido, as quatro nobres verdades do Budismo se assemelham a um medicamento para cura do sofrimento, e Buda as apresenta como se fosse um médico que faz um diagnóstico, emite um prognóstico e prescreve um tratamento.
Ao diagnosticar a condição humana, ele reconhece a natureza existencial do sofrimento (1ª nobre verdade), em razão da impermanência que se faz presente em tudo que é exterior ao Ser. Ainda nesta etapa, examina os meandros do sofrimento, e descobre suas origens n desejo centrado em si mesmo (2ª nobre verdade).
A seguir, Buda emite então um prognóstico, ao concluir que o sofrimento pode cessar (3ª nobre verdade), e, que existe, portanto, possibilidade de cura. Qualquer pessoa, independente de raça, credo ou condição social, pode promover a cessação do sofrimento mediante a superação do anseio egoísta.
Finalmente, ele prescreve um tratamento eficiente e eficaz por meio de um método de viver (4ª nobre verdade) chamado caminho óctuplo, cujo objetivo é devolver-nos a compreensão daquilo que de fato somos: - perfeição absoluta.
Assim, quando superamos o desejo, mesmo que momentaneamente, o sofrimento naquele instante acaba, e tocamos a dimensão atemporal do Ser, o aqui e agora, onde não existe início, meio e fim, nem tampouco passado e futuro.
A cessação momentânea do desejo significa o vislumbre de uma abertura fugaz no céu nebuloso do sofrimento humano, por onde penetram os raios do Ser Interior, clarificando coisas e situações, produzindo em nós o insight da compreensão direta daquilo que realmente somos.
Neste instante, já não existem mais dúvidas provocadas pela comparação e recordação das lembranças e pela expectativa e angústia quanto ao futuro. Vemos as coisas de fato como elas são, sem nos deixar influenciar pelo pano de fundo das experiências acumuladas em nossa memória e pela ansiedade de um futuro criado pela imaginação do ego que busca de todas as formas perpetuar seu domínio secular sobre nós.
Daí a importância da prática diária da plena atenção, sejam pelo zazen ou qualquer outro tipo de meditação que aquiete a mente, pois esses momentos de plenitude, pouco a pouco vão se dilatando, até que o ego seja completamente absorvido pelo Ser e alcancemos aquilo que alguns chamam de iluminação, nirvana, samadhi, ou seja, a compreensão direta Daquilo que realmente somos.
Nessa trajetória, é importante compreendermos que o ego (nossa estrutura mental, intelectual e emocional) não gosta da impermanência ou da transitoriedade de coisas e situações, pois esse tipo de percepção nele provoca insegurança e medo com relação ao futuro.
É esse medo e insegurança que nos levam à preocupação excessiva com a aposentadoria, induzindo-nos a passar boa parte da existência envidando esforços para adquirir mais e mais, com a ilusão de que somente assim teremos um futuro garantido para nós e para aqueles a quem amamos. Daí sermos levados a buscar o ganho fácil por meio da aplicação nas bolsas de valores, loterias, etc. Aplicar na bolsa ou jogar na loteria em si não é um ato condenável. O problema é acreditarmos que essas ações são reais, e que seus efeitos ou ganhos nos trarão felicidade e realização. Esse é um entendimento típico do ego que não consegue perceber que as coisas exteriores são impermanentes. Compreender a vacuidade das coisas é o trampolim de onde nos projetamos para o mergulho no Ser, sem medo de viver o presente, nem tampouco insegurança quanto ao futuro. A crença de que o passado e o futuro são reais é um dos grandes obstáculos a esse salto, pois perdemos o foco no presente.
A expectativa futura é ilusória porque quando chega o futuro, o ego já criou outras necessidades diferentes daquelas que projetamos, mesmo que os objetos de desejo tenham sido conquistados. E assim, seguimos perdidos, sempre insatisfeitos, inseguros e com medo, navegando no mar da existência ao sabor das ondas da impermanência.
A presença do desejo ou anseio egoísta nos torna incapazes de perceber que qualquer que seja o resultado do investimento na bolsa de valores, ou qualquer outra ação semelhante, nós sempre continuaremos insatisfeitos e inseguros.
O problema aqui não está em ter, mas em ser. Acreditar que temos ou possuímos algo gera deslocamento do eixo da roda da vida, pois essa é uma idéia típica do anseio egoísta. É sobre isso que Buda nos convida a refletir: - precisamos compreender as coisas como elas são. E para que alcancemos essa percepção, o conceito de vacuidade torna-se fundamental.
Nossas ações devem ser precedidas pelo esvaziamento da intenção egoísta, que busca sempre a realização pessoal em todo pensamento, palavra ou atitude. No Taoísmo, este é o verdadeiro sentido do Wuwei, isto é, da ação através da não-ação. Não-ação absolutamente não significa passividade, ociosidade. Ao contrário, o não - agir é ativo, dinâmico, pois é vazio dos desejos egoístas que limitam a liberdade e a criatividade do homem. Não – agir implica em fluir de acordo com cada circunstância. É um viver específico para cada momento, que nos auxilia a manter o foco no instante presente, sem se deixar aprisionar pelas impressões da memória ou pela expectativa futura.
Para o ego, a vida resume-se a uma linha temporal que liga o passado ao futuro, e que tem numa extremidade o nascimento físico e na outra a morte. Essa imagem é a própria personificação do sofrimento, pois passamos a maior parte das nossas vidas presos à nostalgia ou tristeza pelas recordações do passado e à angústia ou aflição pela expectativa do futuro. E o anseio egoísta, causa do sofrimento, nasce exatamente dessa ilusão temporal, onde a mente cria necessidades impermanentes com base em fatos passados, projetando-as como segurança para um futuro ilusório.
Se outrora tivemos e hoje não temos mais, sofremos. Se nunca tivemos, e sonhamos em ter amanhã, também sofremos. Se hoje temos e queremos mais, novamente somos confrontados pelo sofrimento. É assim que a mente-ego flutua no mar revolto desse lapso temporal que chamamos vida. Sem perceber que a chave para libertar-se é a plena atenção no agora, o ego entrega-se ao sofrimento, por não perceber a impermanência em tudo aquilo que o rodeia, e de onde ele espera inutilmente obter felicidade.
A terceira nobre verdade, em complemento às duas nobres verdades anteriores, ao anunciar a cessação do sofrimento, indica-nos a plena atenção no agora, como forma de superarmos o anseio egoísta. Quando vivemos a plenitude do presente, não somos mais movidos por intenções ou desejos do ego, nascidos das recordações do passado ou do anseio pelo futuro.
Segundo essa concepção, a vida deixa de existir como uma estrada que liga nosso nascimento a um destino, e passa a significar a própria caminhada. O segredo da cessação do sofrimento é viver a plenitude de cada passo da jornada, dia a dia, instante a instante, percebendo as coisas como de fato elas são, sem deixar que nossa compreensão seja turvada pelas lembranças ou pela expectativa do vir a ser.
Se adotarmos essa prática de viver que privilegia mais o ser do que o ter, cultivando a quietude de uma vida simples, dia virá em que compreenderemos num só átimo o sentido da vacuidade, e logo todos os desejos egoístas desaparecerão, pois serão satisfeitos ao perceberemos que tudo está em nós, que somos o próprio universo. Nesse instante, finalmente compreenderemos, e experimentaremos cada gota divina das verdades vertidas pelo Sutra do Coração:
Ó Shariputra, a forma é vacuidade, a vacuidade é a forma. A forma não é outra senão a vacuidade, a vacuidade não é outra senão a forma. As sensações, percepções, vontade e consciência também são assim.
Ó Shariputra, todos os fenômenos são vacuidade. Não aparecem nem desaparecem, não são impuros nem puros, não crescem nem diminuem. Portanto, na vacuidade não há forma, sensação, percepção, vontade, consciência; não há olho, ouvido, nariz, língua, corpo, mente; não há cor, som, odor, sabor, tato, fenômeno; não há [reino dos sentidos, desde] o reino da visão até o reino da mente; não há [elos da existência dependente, desde] a ignorância e o fim da ignorância até a velhice-e-morte e a fim da velhice-e-morte; não há [as Verdades Nobres sobre] o Sofrimento, a Origem, a Cessação, o Caminho; não há sabedoria, nem ganho, nenhum ganho.
Sem o que ganhar, o Bodhisattva permanece na perfeição da sabedoria e não tem obstáculos em sua mente. Sem obstáculos e, portanto, sem medo, ele fica bem distante das delusões. Isto é o nirvana.
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BATCHELOR, S. Budismo sem crenças: a consciência do despertar. São Paulo: Palas Athena, 2005.
SMITH, H.; NOVAK, P. Budismo: uma introdução concisa. São Paulo: Cultrix, 2007.
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