domingo, 25 de dezembro de 2011
Vivendo o Natal do Agora
segunda-feira, 15 de novembro de 2010
Chico Xavier: um homem chamado Amor
Conheci Chico Xavier pela primeira vez quando ainda era muito jovem. Em todas as três vezes que estive com ele, uma profunda transformação interior se processou em mim. Chico era como um poderoso dínamo de forças, que induzia quem dele se aproximava a voltar-se para dentro de si e reavaliar sua vida.
Havia algo nele que cativava à primeira vista. Pessoas de todas as crenças, religiões, camadas sociais, raça ou cor que o visitavam, se rendiam ao influxo do amor e humildade incondicionais que dele exalavam, através do seu gesto de carinho, do seu olhar compassivo, de sua palavra sempre amiga e orientadora, da sua paciência e generosidade, da sua renúncia irrestrita em favor da mitigação da dor alheia. Perto de Chico, a mente se aquietava e uma intensa sensação de paz preenchia o vazio dos corações, insuflando otimismo e esperança, lenitivos para a dor da perda e da desesperança.
Hoje, sua obra de amor e doação integral ao próximo está em alta nas mídias de todo país e do mundo. A reedição das obras mediúnicas veiculadas por seu intermédio, a publicação de dezenas de livros sobre sua obra de amor, e a exibição de uma ínfima parcela de sua intensa e prodigiosa existência nas telas do cinema, têm nos feito redescobrir o homem Chico Xavier.
Sim. Por que Chico, antes de mito, como alguns querem transformá-lo, é um ser que viveu na vida física, o ápice do potencial de humanidade que cada um de nós traz em seu íntimo, à espera do nosso despertar. Sua trajetória terrena, integralmente percorrida pelos caminhos da compaixão e do amor, é um hino de esperança e confiança no homem, contrariando os pessimistas de plantão, e mostrando que é possível a construção de uma sociedade mais justa, mais fraterna, mais equânime, ainda nesta vida terrena.
Na primeira vez em que o visitei, uma fila enorme serpenteava pelo lado externo da casa simples que o abrigava em Pedro Leopoldo. Estávamos no último dia do ano de 1983, e uma leve e fina garoa refrescava-nos o calor do verão, naquela paisagem tipicamente mineira, dominada pelas Alterosas azuis.
Chico residia em Uberaba e costumava passar os finais de ano em sua cidade natal, e, eu, naquela época, como participante de um grupo de jovens espíritas da cidade de Belo Horizonte, estava ali, cheio de juvenil expectativa para encontrar o mundialmente famoso médium mineiro.
Quando nos aproximávamos da porta de entrada da pequena sala, onde Chico, assentado, atendia pacientemente a todos, percebi-lhe imediatamente as dificuldades físicas com o lado esquerdo do corpo, certamente decorrentes da angina que àquela altura já lhe era companheira constante. Embora fosse visível seu esforço para se manter acomodado na poltrona simples, ele parecia alheio ao próprio sofrimento físico. Bem humorado, era solícito com todos que se lhe aproximavam, respondendo às perguntas e apelos que lhe eram endereçados com a gentileza e a atenção que lhe eram peculiares. Suas palavras, sorrisos, gestos e olhares eram expressões do mais puro amor e carinho.
Olhava-o agora bem de perto, e senti-me profundamente envergonhado. Conquanto eu fosse ainda muito jovem, percebia nitidamente o imenso abismo entre minha vida, cheia de preocupações e expectativas de conquistas pessoais, e a existência até ali septuagenária daquele médium, que se dedicara exclusivamente ao bem estar do próximo. Estava diante de um homem que não tivera tempo de cogitar nem tampouco realizar nada para si mesmo, pois, a dor e o sofrimento alheios, continuadamente lhe cobravam a dedicação de todo o seu tempo disponível.
E todos nós, ali presentes, preocupados em sermos por ele atendidos em nossas necessidades, mais íntimas e urgentes, parecíamos alheios às necessidades do homem Chico Xavier. Dele, sugávamos tudo, até mesmo as energias, que o médium, no cumprimento de sua missão, nos doava de forma incontinenti.
No entanto, apesar das calúnias e injustiças sofridas ao longo da vida, de sentir no imo do coração compassivo a intensidade da dor alheia, de nunca ter nutrido nenhuma aspiração para si, Chico transparecia uma felicidade inabalável e contagiante. Naquele instante, a constatação desse fato abalaria profundamente minhas concepções juvenis acerca do sentido da vida, e mudaria para sempre os rumos e aspirações da minha busca.
Sentia intuitivamente que aquele homem alquebrado, que escondia a própria grandeza espiritual por detrás da simplicidade e da humildade, queria nos dizer, através do seu exemplo, que a felicidade duradoura não estava na satisfação dos desejos individuais. Ao contrário, se quiséssemos ser felizes tínhamos de nos esforçar para absorver o ego no Ser interior, deixando que a essência e não a aparência governasse nossas vidas.
Chico nos indicava um roteiro para alijarmos de nós o egoísmo, raiz de todos os males: o caminho da doação incondicional em favor do próximo. O exercício diário e contínuo da compaixão desloca o centro das relações entre os seres do “eu” para o “outro”. Com isso o querer individual cede lugar à preocupação com o bem estar alheio. Já não interessa mais o desejo pessoal e sim a necessidade do outro. A compaixão consome as diferenças entre “eu” e o “outro” no fogo do amor ao próximo.
A atitude compassiva e generosa daquele homem, ao longo de toda sua vida, havia consumido-lhe a escuridão do ego, e o que víamos ali, diante de nós, era o brilho radiante de sua luz interior, que como um sol acolhia indistintamente a todos que dele se aproximavam.
Finalmente, estava a poucos passos do médium. Duas pessoas me separavam do Chico. Em instantes falaria com ele, e nada me vinha à mente. Havia preparado mais de uma questão para quando estivesse com ele. Porém, ali, naquele instante, eu não me lembrava de nenhuma delas. Também não sentia mais necessidade de indagar qualquer coisa. Era como se todas as minhas dúvidas tivessem se esvanecido durante as profundas reflexões experimentadas ao longo do trajeto daquela enorme fila. Sentia-me estranhamente feliz, de uma forma ainda não experimentada, até então.
Uma das pessoas à minha frente era uma senhora idosa que carregava um belo quadro do médium, pintado a óleo. A autora com uma fisionomia radiante de felicidade entregou o quadro a Chico, dizendo-lhe da imensa satisfação e alegria que tivera em poder retratá-lo naquela pintura. O médium sorriu com a pureza e ingenuidade de uma criança, e em sua desconcertante humildade, que em momento algum dava brechas ao ego, disse para regozijo geral: - "Obrigado... Muito obrigado! Quero dizer-lhe, minha querida amiga, e todos haverão de concordar, que o quadro ficou infinitamente melhor do que o original". Sorrimos todos, diante de mais uma lição daquela alma pura e sensível.
A próxima da fila era uma amiga integrante do grupo de jovens espíritas ao qual eu pertencia. Ao chegar próxima do médium, e notando-lhe a dificuldade física, já que ele mal conseguia ficar sentado, a jovem tentou agachar-se diante dele no intuito de facilitar-lhe a conversação. Percebendo-lhe o gesto, e não querendo ficar numa posição física superior à jovem, que pudesse denotar qualquer sentimento de adoração, Chico rapidamente segurou-lhe as mãos e com imensa dose de humor e doçura disse-lhe: - "Minha filha, não faça isso... Se você se agachar, eu deito..." Mais uma vez sorrimos todos diante daquela espontânea demonstração de fraternidade, que iguala todos os seres na dimensão da centelha divina que reside em nós.
A jovem conversou ainda um pouco mais com Chico, e despediu-se. E de repente lá estava eu, ao lado do médium, segurando-lhe as mãos, e com os lábios emudecidos pela emoção. Ele olhou-me fixamente nos olhos como que sondando meu íntimo de modo gentil e amoroso. Após alguns segundos, Chico me disse carinhosamente: - “Que bom que vieste meu filho... Por vezes, em épocas como esta, em que se comemora a chegada de um novo ano, lembro-me sempre dos que nada têm... Órfãos de amor perambulam pelas ruas e periferias das cidades do mundo, à espera de inaugurarmos para eles, com o nosso concurso fraterno e amoroso, uma nova etapa em suas vidas sofridas, onde a luz da esperança brilhe na escuridão da dor...".
Não pude conter a emoção que invadia meu coração naquele momento, e duas longas gotas de lágrimas rolaram pela minha face... Consegui apenas agradecê-lo e pedir que o Criador o abençoasse. Enquanto agradecia-lhe, Chico segurava e apertava firmemente minhas mãos.
Saí da sala singela e dirigi-me ao jardim da casa, onde debaixo de um caramanchão florido, chorei copiosamente. Ali, sozinho comigo mesmo, verti o pranto da dúvida, até a última gota. Não havia mais questionamentos, nem tampouco incertezas. Esvaziei-me da desesperança e tornei-me pleno do sentido da vida, que tão ansiosamente buscava em meus arroubos juvenis. O amor daquele homem notável reconectara-me com minha essência. De modo significativo, logo nos primeiros minutos daquele ano novo, embora ainda muito jovem, sentia-me renascer
Tempos depois, pude compreender melhor aquelas sábias e visionárias palavras de Chico, ao experimentar no imo do coração a felicidade anônima de servir ao próximo, não apenas nas atividades da casa espírita, mas, e principalmente, na vivência diária.
Mais tarde, já de madrugada, Chico recebeu o nosso grupo de jovens para um encontro mais íntimo, o qual não tínhamos intenção de prolongar em razão do seu estado de saúde. A razão para aquele pedido do Chico residia no fato de que a mentora espiritual da nossa mocidade espírita era sua mãe, Maria João de Deus. Transcorridos alguns minutos de conversação com o querido médium, encontrávamos-nos envolvidos por uma sublime atmosfera espiritual que aquecia nossas mentes e corações, fazendo-nos esquecer o frio das horas iniciais do ano novo que chegara. Foi quando Chico, em sua emoção inesgotável com relação a tudo que lembrasse sua querida mãe, pediu-nos que cantássemos para ele o hino do nosso grupo, dedicado à sua progenitora. Ao som das nossas vozes juvenis embaladas pelos acordes de um violão, ele acompanhou o cântico visivelmente emocionado, e, ao final, lembro-me ainda de sua voz, embargada pelo pranto de eterna gratidão à sua mãe, a nos dizer: - “Eu pedi a ela (Maria João de Deus) a esmola da vida, e ela me deu um tesouro que são todos vocês...”
Naquele momento, em meio ao silêncio e à quietude daquela madrugada fria de Pedro Leopoldo, choramos todos de alegria, experimentando, na presença daquele ser iluminado, um pouco das bem-aventuranças expressas na mensagem dos grandes avatares que visitaram a terra, como Buda e Jesus.
Penso que a grande mensagem de Chico Xavier foi escrita com os atos de sua própria vida. Ao doar-se integralmente ao outro, esquecendo de si mesmo, e preocupando-se apenas com a felicidade alheia, ele nos assinalou um difícil e ao mesmo tempo auspicioso roteiro para romper os grilhões do ego e alcançar a iluminação ou o conhecimento de si mesmo: - o caminho do amor ao próximo.
Tenho por mim que existem seres que vêm ao mundo para serem a prova viva de que a essência do homem é amor. Chico Xavier, certamente, é um deles.
segunda-feira, 29 de março de 2010
O tempo e a plena atenção
Há uma dicotomia no tempo: de um lado, acreditamos em sua existência, e de fato, na dimensão física não podemos dele escapar; de outro lado, é uma ilusão, pois o que verdadeiramente existe é única e exclusivamente o momento presente. O momento que passou, chamado de passado, foi, naquele instante, somente um momento presente. E o momento que virá, chamado de futuro, será, no instante em que ele ocorrer, apenas um momento presente. Em verdade, o que existe é somente um eterno presente.
É a mente que nos trai, fazendo-nos acreditar que o agora se divide em passado, presente e futuro. Na dimensão física, a mente-ego coloca o suceder dos fatos em uma linha temporal seqüencial, dando-nos a impressão de que o tempo existe, mas tudo não passa de uma mera ilusão cognitiva.
Já no espaço de consciência profunda, onde reside o fulcro da vida, chamado de Ser interior ou Essência divina, estamos interconectados a tudo e a todos, de tal forma, que não existe tempo, nem tampouco espaço. À semelhança dos interstícios quânticos da matéria infinitesimal, onde as partículas se deslocam de um ponto a outro, sem, contudo, se deslocarem no espaço, o Ser na dimensão quântica integra-se a tudo que existe na dimensão física. Não existe ali separatividade e o verbo ser é somente conjugado no presente: Tudo é!
Aliás, a face tridimensional da vida é um pálido reflexo da dimensão divina do homem. Centro gerador da vida, o Ser é o próprio universo apreciando a si mesmo através da mente-ego.
Não é que o tempo seja ruim. No aspecto tridimensional em que vivemos, onde precisamos de um corpo físico para nos manifestar, tanto a mente quanto o tempo por ela produzido são importantes para lidarmos com os aspectos práticos da vida cotidiana. Neste sentido, Dogen, grande mestre zen budista e um dos maiores sábios que já passou pelo planeta Terra, nos diz: "Tudo é impermanente e o tempo passa rapidamente. Não desperdice sua vida em vão".
Assim, o tempo na vida tridimensional é importante para os aspectos práticos do cotidiano, mas não é o essencial. Com disciplina, podemos aprender a tirar proveito de cada instante vivido, pautando nossa caminhada na vida física por meio da plena atenção. Este o verdadeiro sentido de se aproveitar bem o tempo: viver a plenitude do momento presente.
São extraordinários os efeitos transformadores da plena atenção. Quando estivermos no olho do furacão, onde tudo e todos parecem estar contra nós, experimentemos cortar o circuito febril da mente, e focar a atenção no instante presente.
A plenitude do momento presente aquieta a mente, que teima em nos levar do passado ao futuro nas asas da ansiedade, do medo, da aflição. Ancorados no agora, abrimos mão das artimanhas do ego em querer manipular situações e pessoas, como um pássaro em pleno vôo, perseguido pela águia, abre o bico e deixa o desejado alimento cair. Assim como a águia desiste do pássaro e voa em direção ao alimento em queda livre, a mente, sob o influxo da plena atenção, desiste do seu alimento natural: a inquietude do pensar. O pássaro ao se desapegar do alimento ganha para si a liberdade de voar em um céu pleno de paz. A mente desapegando-se da ansiedade, alimento do futuro e da recordação, alimento do passado, encontra na plenitude do presente a porta de acesso à dimensão do Ser.
Viver o instante presente é ser uno com tudo e todos; sujeito é objeto, objeto é sujeito; sujeito é sujeito; não existe mais dualidade, nem separação; ao contrário, a mente descansa docemente, pois cessaram os desejos, frutos da ansiedade, do medo pelo vir-a-ser, da recordação do que já se foi.
Sentir o contentamento do chão sob a sola dos pés; a felicidade da água escorrendo sobre a pele; os infinitos matizes de sabores do alimento; a sinfonia da voz nos falando; a gentileza da voz que fala.
Caminhar, caminhando. Apenas tomar banho. Comer, comendo. Ouvir, ouvindo. Falar, falando. Cada ação está contida na ação. Sem interesses ou desejos escondidos nas dobras do tempo. Apenas os minutos fluindo, sucessivamente, um após o outro, continuamente, como um rio em direção à plenitude do mar.
Plena atenção é cessar o movimento febril dos pensamentos que como ondas de ilusão turvam a superfície da realidade. Para no momento seguinte, perceber, no fundo do lago da vida, o próprio universo pulsando, e nele reconhecer a si mesmo.
domingo, 29 de novembro de 2009
Estar presente...
O caminho perfeito não conhece dificuldades ,
Mas se recusa a ter preferências;
Apenas quando é libertado do ódio e do amor
É que se revela totalmente, e sem disfarce.
Uma diferença de um décimo de centímetros,
E o céu e a terra são separados.
Se você deseja vê-lo diante dos seus olhos
Não tenha pensamentos fixos nem contra nem a favor.
Instigar aquilo de que você gosta contra aquilo de que você não gosta:
Essa é a dança da mente.
O Caminho é perfeito como a amplidão do espaço,
Sem nada a querer, sem nada supérfluo.
É devido às escolhas que faz
Que a sua Essência se perde de vista.
O Um não é nada além do Todo, o Todo nada além do Um.
Tome seu lugar e o resto se seguirá por si só.
Falei, mas foi em vão, pois o que podem dizer as palavras
Sobre as coisas que não têm ontem, amanhã ou hoje?
Seng Ts’an
(Extraído do livro “Budismo: Uma introdução Concisa – Huston Smith e Philip Novak)
Vivemos exatamente de forma contrária à última estrofe do poema acima. Queremos compreender tudo pelo intelecto, e para isso a mente-ego necessita de definições. No entanto, para vivenciarmos a resposta da pergunta que move a humanidade “Quem sou eu?” precisamos buscar o vazio.
A natureza da mente é o condicionamento. Exibimos por trás de cada atitude, palavra ou pensamento uma marca mental, que dá o tom ou as cores da nossa interpretação de mundo. Uma mesma situação pode ser compreendida de forma diferente por várias pessoas, de acordo com o influxo do pano de fundo ou dos condicionamentos que trazem em suas mentes.
Como exemplo, observe com atenção a figura abaixo:
O que você vê na imagem acima: Um hexágono? Um cubo com a face superior olhando-se de cima para baixo? Um cubo com a face inferior olhando-se de baixo para cima?
Pois, é... Note que mesmo havendo três possibilidades, ou seja, mesmo que consigamos visualizar as três figuras, existe sempre uma delas que teima em permanecer em nossa tela mental, condicionando nossa percepção, e dificultando a identificação das outras duas.
Essa é uma ação típica da mente-ego que interpreta as situações no mundo sensível de acordo com sua conveniência, condicionando nossas vidas sem que, na maioria das vezes, tenhamos consciência disso. Esse viés utilizado pelo ego para interpretar o mundo de acordo com suas concepções tem origem na própria estrutura egóica, herdada das memórias acumuladas (pensamentos e emoções) por meio das experiências do ser na dimensão do sensível.
Como então colocarmos os pés no Caminho Perfeito de que nos fala o poema do Mestre Seng Ts’na, caminho este totalmente livre dos condicionamentos?
O segredo é percebermos que o vazio está presente em todas as coisas. Não aquela idéia de vazio deduzida pelo intelecto, que nada mais é do que a negação de algo ou da própria existência.
A vacuidade aqui pretendida não pode ser definida pela mente-ego, pois se constitui na própria natureza incondicionada do Ser, ou seja, a natureza búdica, livre de marcas mentais, por meio da qual, percebemos as coisas como elas são.
Este caminho perfeito, de que nos fala Seng Ts’na, é o momento presente, o agora. Estar presente significa a própria conexão entre o Ser e o mundo sensível, isto é, entre a Testemunha de tudo e o Tudo. A simples consciência desse fato é capaz de transformar a Testemunha e o Tudo em um só.
Em razão da sua natureza condicionada, a mente fraciona a realidade exterior em sujeito e objeto, dando-nos a falsa impressão de que existimos separados do mundo sensível. E neste contexto, a linha temporal na qual se baseia a existência física, reforça esse processo de distinção, na medida em que as recordações da memória e as imagens criadas pela imaginação que projeta o amanhã são instrumentos desse condicionamento, utilizados pela mente para criar a ilusão de que objetos e pessoas estão fora de nós.
Portanto, viver a plenitude do agora é estar liberto da memória (passado) e do vir-a-ser (futuro). Quando vivemos nossa vida plenamente ancorados no instante presente, nos libertamos de forma consciente de dois tipos de condicionamentos que bloqueiam nossa percepção acerca das coisas como elas realmente são: 1) a repetição de padrões mentais que se estabelecem automaticamente em razão de comparações quase instantâneas realizadas pela mente-ego entre aquilo que experimentamos no agora e recordações de situações semelhantes vivenciadas no passado; 2) sobreposição de imagens projetadas para o futuro sobre nossa compreensão acerca da situação presente, geradas pela ansiedade da mente-ego, que não gosta de sentir insegurança quanto ao porvir, e por isso utiliza-se da imaginação para garantir a satisfação dos seus desejos.
Assim, estar presente é apenas ser, sem julgamentos ou comparações, sem certo ou errado, nem bonito, nem feio, nem alto, nem baixo. É na plenitude do agora que todos os opostos, toda dicotomia se complementa, e podemos então perceber a unidade.
Essa prática no Zen se chama Shikantaza, ou seja, simplesmente estar presente, simplesmente ser, simplesmente fluir na eternidade do agora.
Os condicionamentos e as marcas mentais têm sua origem na memória e na ansiedade do vir-a-ser. Por isso, viver cada instante com plena atenção é ser livre, pois o momento presente em si, sem as limitações temporais do passado e do futuro, é vazio de marcas mentais e condicionamentos. Este é o sentido verdadeiro de vacuidade e também de liberdade.
Logo, se estou plenamente focado no agora, sem deixar que a mente vagueie pelos labirintos ilusórios das recordações e das previsões, minha percepção acerca de determinada situação não difere mais da percepção do outro, pois não há mais a interposição do viés do ego entre nós. O momento presente liberta da separatividade.
No agora, não me encontro mais separado do outro, pois não existe mais a minha compreensão e a compreensão do outro. Sem o pano de fundo da mente-ego, as coisas são como elas são, e, portanto, o mundo sensível não depende mais das opiniões do ego para ser compreendido.
Por isso, aquele que vive no instante presente torna-se imune à opinião alheia, que não mais o atinge, nem o instiga, nem tampouco o aborrece. Para ele, já não há mais sentido em querer convencer ou impor ao outro a sua opinião, pois sua antiga compreensão das coisas, a compreensão da mente-ego, da qual ele extraía opiniões intelectuais e separatistas sobre o mundo sensível, já não mais existe.
E se opiniões e definições intelectivas já não são mais importantes, então não existem mais diferenças entre ele e o outro. Surge desse fato um sentimento natural de aceitação do outro, fruto da compaixão, aqui compreendida como a percepção que nasce da compreensão de que temos a mesma origem, o mesmo gérmen, a mesma semente.
Portanto, viver a plenitude do agora faz com que resgatemos nosso sentimento mais profundo de humanidade, respeitando e acima de tudo reconhecendo o outro.
Estar plenamente imerso no presente é, pois, o caminho perfeito. Trilhar esse caminho é romper os grilhões da ilusão da separatividade criada pelos condicionamentos da mente-ego. E viver sem condicionamentos é realizar a liberdade de ser uno com tudo e todos.
segunda-feira, 2 de novembro de 2009
Continuação: As quatro nobres verdades e a crise financeira mundial
É aceitável então pressupor que ao superarmos o anseio egoísta, o eixo da nossa existência deixa de estar deslocado em relação à harmonia do universo, e com isso o sofrimento cessa. É disso que trata a Terceira nobre verdade: - a possibilidade de cessação do sofrimento, por meio da superação do desejo.
Esse encadeamento de verdades proposto pelo Senhor Buda é extraordinariamente simples e ao mesmo tempo profundo.
Ao explicar que a compreensão do sofrimento (1ª nobre verdade) permite identificar o anseio egoísta como sua causa (2ª nobre verdade), Buda apresenta-nos o sofrimento como o dilema existencial do ser humano, com o qual viemos nos defrontando, vida após vida.
Por outro lado, ele afirma que é possível cessar o sofrimento por meio da superação do anseio egoísta, e com isso, mostra-nos que existe uma saída, uma solução para esse dilema. De acordo com os ensinamentos do Budismo a cessação do sofrimento (3ª nobre verdade) é alcançada quando trilhamos o caminho óctuplo (4ª nobre verdade, sobre a qual falaremos no próximo post).
Neste sentido, as quatro nobres verdades do Budismo se assemelham a um medicamento para cura do sofrimento, e Buda as apresenta como se fosse um médico que faz um diagnóstico, emite um prognóstico e prescreve um tratamento.
Ao diagnosticar a condição humana, ele reconhece a natureza existencial do sofrimento (1ª nobre verdade), em razão da impermanência que se faz presente em tudo que é exterior ao Ser. Ainda nesta etapa, examina os meandros do sofrimento, e descobre suas origens n desejo centrado em si mesmo (2ª nobre verdade).
A seguir, Buda emite então um prognóstico, ao concluir que o sofrimento pode cessar (3ª nobre verdade), e, que existe, portanto, possibilidade de cura. Qualquer pessoa, independente de raça, credo ou condição social, pode promover a cessação do sofrimento mediante a superação do anseio egoísta.
Finalmente, ele prescreve um tratamento eficiente e eficaz por meio de um método de viver (4ª nobre verdade) chamado caminho óctuplo, cujo objetivo é devolver-nos a compreensão daquilo que de fato somos: - perfeição absoluta.
Assim, quando superamos o desejo, mesmo que momentaneamente, o sofrimento naquele instante acaba, e tocamos a dimensão atemporal do Ser, o aqui e agora, onde não existe início, meio e fim, nem tampouco passado e futuro.
A cessação momentânea do desejo significa o vislumbre de uma abertura fugaz no céu nebuloso do sofrimento humano, por onde penetram os raios do Ser Interior, clarificando coisas e situações, produzindo em nós o insight da compreensão direta daquilo que realmente somos.
Neste instante, já não existem mais dúvidas provocadas pela comparação e recordação das lembranças e pela expectativa e angústia quanto ao futuro. Vemos as coisas de fato como elas são, sem nos deixar influenciar pelo pano de fundo das experiências acumuladas em nossa memória e pela ansiedade de um futuro criado pela imaginação do ego que busca de todas as formas perpetuar seu domínio secular sobre nós.
Daí a importância da prática diária da plena atenção, sejam pelo zazen ou qualquer outro tipo de meditação que aquiete a mente, pois esses momentos de plenitude, pouco a pouco vão se dilatando, até que o ego seja completamente absorvido pelo Ser e alcancemos aquilo que alguns chamam de iluminação, nirvana, samadhi, ou seja, a compreensão direta Daquilo que realmente somos.
Nessa trajetória, é importante compreendermos que o ego (nossa estrutura mental, intelectual e emocional) não gosta da impermanência ou da transitoriedade de coisas e situações, pois esse tipo de percepção nele provoca insegurança e medo com relação ao futuro.
É esse medo e insegurança que nos levam à preocupação excessiva com a aposentadoria, induzindo-nos a passar boa parte da existência envidando esforços para adquirir mais e mais, com a ilusão de que somente assim teremos um futuro garantido para nós e para aqueles a quem amamos. Daí sermos levados a buscar o ganho fácil por meio da aplicação nas bolsas de valores, loterias, etc. Aplicar na bolsa ou jogar na loteria em si não é um ato condenável. O problema é acreditarmos que essas ações são reais, e que seus efeitos ou ganhos nos trarão felicidade e realização. Esse é um entendimento típico do ego que não consegue perceber que as coisas exteriores são impermanentes. Compreender a vacuidade das coisas é o trampolim de onde nos projetamos para o mergulho no Ser, sem medo de viver o presente, nem tampouco insegurança quanto ao futuro. A crença de que o passado e o futuro são reais é um dos grandes obstáculos a esse salto, pois perdemos o foco no presente.
A expectativa futura é ilusória porque quando chega o futuro, o ego já criou outras necessidades diferentes daquelas que projetamos, mesmo que os objetos de desejo tenham sido conquistados. E assim, seguimos perdidos, sempre insatisfeitos, inseguros e com medo, navegando no mar da existência ao sabor das ondas da impermanência.
A presença do desejo ou anseio egoísta nos torna incapazes de perceber que qualquer que seja o resultado do investimento na bolsa de valores, ou qualquer outra ação semelhante, nós sempre continuaremos insatisfeitos e inseguros.
O problema aqui não está em ter, mas em ser. Acreditar que temos ou possuímos algo gera deslocamento do eixo da roda da vida, pois essa é uma idéia típica do anseio egoísta. É sobre isso que Buda nos convida a refletir: - precisamos compreender as coisas como elas são. E para que alcancemos essa percepção, o conceito de vacuidade torna-se fundamental.
Nossas ações devem ser precedidas pelo esvaziamento da intenção egoísta, que busca sempre a realização pessoal em todo pensamento, palavra ou atitude. No Taoísmo, este é o verdadeiro sentido do Wuwei, isto é, da ação através da não-ação. Não-ação absolutamente não significa passividade, ociosidade. Ao contrário, o não - agir é ativo, dinâmico, pois é vazio dos desejos egoístas que limitam a liberdade e a criatividade do homem. Não – agir implica em fluir de acordo com cada circunstância. É um viver específico para cada momento, que nos auxilia a manter o foco no instante presente, sem se deixar aprisionar pelas impressões da memória ou pela expectativa futura.
Para o ego, a vida resume-se a uma linha temporal que liga o passado ao futuro, e que tem numa extremidade o nascimento físico e na outra a morte. Essa imagem é a própria personificação do sofrimento, pois passamos a maior parte das nossas vidas presos à nostalgia ou tristeza pelas recordações do passado e à angústia ou aflição pela expectativa do futuro. E o anseio egoísta, causa do sofrimento, nasce exatamente dessa ilusão temporal, onde a mente cria necessidades impermanentes com base em fatos passados, projetando-as como segurança para um futuro ilusório.
Se outrora tivemos e hoje não temos mais, sofremos. Se nunca tivemos, e sonhamos em ter amanhã, também sofremos. Se hoje temos e queremos mais, novamente somos confrontados pelo sofrimento. É assim que a mente-ego flutua no mar revolto desse lapso temporal que chamamos vida. Sem perceber que a chave para libertar-se é a plena atenção no agora, o ego entrega-se ao sofrimento, por não perceber a impermanência em tudo aquilo que o rodeia, e de onde ele espera inutilmente obter felicidade.
A terceira nobre verdade, em complemento às duas nobres verdades anteriores, ao anunciar a cessação do sofrimento, indica-nos a plena atenção no agora, como forma de superarmos o anseio egoísta. Quando vivemos a plenitude do presente, não somos mais movidos por intenções ou desejos do ego, nascidos das recordações do passado ou do anseio pelo futuro.
Segundo essa concepção, a vida deixa de existir como uma estrada que liga nosso nascimento a um destino, e passa a significar a própria caminhada. O segredo da cessação do sofrimento é viver a plenitude de cada passo da jornada, dia a dia, instante a instante, percebendo as coisas como de fato elas são, sem deixar que nossa compreensão seja turvada pelas lembranças ou pela expectativa do vir a ser.
Se adotarmos essa prática de viver que privilegia mais o ser do que o ter, cultivando a quietude de uma vida simples, dia virá em que compreenderemos num só átimo o sentido da vacuidade, e logo todos os desejos egoístas desaparecerão, pois serão satisfeitos ao perceberemos que tudo está em nós, que somos o próprio universo. Nesse instante, finalmente compreenderemos, e experimentaremos cada gota divina das verdades vertidas pelo Sutra do Coração:
Ó Shariputra, a forma é vacuidade, a vacuidade é a forma. A forma não é outra senão a vacuidade, a vacuidade não é outra senão a forma. As sensações, percepções, vontade e consciência também são assim.
Ó Shariputra, todos os fenômenos são vacuidade. Não aparecem nem desaparecem, não são impuros nem puros, não crescem nem diminuem. Portanto, na vacuidade não há forma, sensação, percepção, vontade, consciência; não há olho, ouvido, nariz, língua, corpo, mente; não há cor, som, odor, sabor, tato, fenômeno; não há [reino dos sentidos, desde] o reino da visão até o reino da mente; não há [elos da existência dependente, desde] a ignorância e o fim da ignorância até a velhice-e-morte e a fim da velhice-e-morte; não há [as Verdades Nobres sobre] o Sofrimento, a Origem, a Cessação, o Caminho; não há sabedoria, nem ganho, nenhum ganho.
Sem o que ganhar, o Bodhisattva permanece na perfeição da sabedoria e não tem obstáculos em sua mente. Sem obstáculos e, portanto, sem medo, ele fica bem distante das delusões. Isto é o nirvana.
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BATCHELOR, S. Budismo sem crenças: a consciência do despertar. São Paulo: Palas Athena, 2005.
SMITH, H.; NOVAK, P. Budismo: uma introdução concisa. São Paulo: Cultrix, 2007.
sábado, 19 de setembro de 2009
Continuação: As quatro nobres verdades e a crise financeira mundial
No post anterior, vimos que a impermanência do mundo produz sofrimento, na medida em que pessoas e coisas fora de nós, às quais nos apegamos, são temporárias, transitórias, passageiras. O sentimento de posse ou apego nos faz considerar o objeto de desejo como parte de nós. Assim, quando esse objeto de alguma forma se extingue, sobrevém o sentimento de perda, que abre em nós as feridas da dor, do sofrimento.
Compreender de forma correta a causa dessas feridas é fundamental ao homem em sua busca pela libertação. É disso que trata a Segunda Nobre Verdade. Segundo Buda, a causa do deslocamento da vida (dukkha) é tanha, palavra do idioma páli, normalmente traduzida por “desejo”.
Porém, é preciso compreender que tanha trata de um tipo específico de desejo: - o desejo de realização pessoal. Quando somos altruístas, e pensamos de forma espontânea, mais nos outros do que em nós mesmos, tanha se mantém distante, pois, esse tipo de atitude enfraquece o ego. É bem verdade que ser desapegado exige de nós percepção profunda acerca daquilo que move nossas ações.
Muitas vezes, envolvemo-nos em ações filantrópicas, que em verdade escondem outras motivações que não apenas a felicidade de servir, como por exemplo, o desejo, ainda que sutil (mas ainda assim desejo...), de ser reconhecido. O mesmo ocorre com o desejo de iluminação, que muitas vezes esconde a satisfação ilusória de se tornar superior, um instrumento de auxílio à humanidade. Isso significa apenas uma coisa: o ego está mais presente do que nunca, e ao agirmos assim, tanha, a súdita mais obediente do ego, nos leva de roldão de volta aos grilhões do sofrimento, retirando-nos da dimensão da liberdade, onde se age através da não-ação, isto é, onde não nutrimos motivos, expectativas ou desejo de alcançar o que quer que seja como fruto das nossas ações (o wuwei do taoísmo).
No fundo, tanha é fruto da nossa miopia espiritual, em acreditar que estamos separados das pessoas e coisas que nos rodeiam. Não percebemos que essa miopia é causada pela ilusão de termos uma identidade individual, traduzida em um corpo, com uma árvore genealógica, nome, família, empregado na organização tal, que gosta disso ou daquilo, que tem essa ou aquela preferência.
Tanha, pois, consiste de todas “aquelas inclinações que tendem a continuar ou aumentar a falsa percepção de uma existência separada do objeto do desejo; de fato, Tanha sintetiza todas as formas de egoísmo; a essência à custa da qual o próprio desejo se realiza. Sendo a existência una, tudo o que tende a separar um aspecto do outro causa sofrimento à unidade que, quase sempre, inconscientemente, trabalha contra essa lei. Nossa tarefa para com nossos semelhantes é compreendê-los como extensões de nós mesmos – facetas semelhantes da mesma realidade” *
Se compreendêssemos a verdade de que todo o universo exterior está contido em nós mesmos; que somos o próprio universo, que admira a si mesmo por nosso intermédio, certamente não mais haveria objetos de desejo, e conseqüentemente desejo, pois compreenderíamos que tudo já está presente em nossa natureza última, em nosso ser interior, em nossa natureza búdica ou em nossa essência divina.
No caso da crise financeira mundial, é justamente o desejo de querer sempre mais e mais, com vistas a alcançar a tão desejada realização pessoal, mais comumente conhecida como sucesso na vida, que se transforma em causa do sofrimento de tantas pessoas, como aquele meu colega de trabalho, citado no post anterior. O sentimento de posse e apego ao dinheiro acabou produzindo dor e sofrimento nos acionistas das bolsas de valores, quando essas despencaram, e o dinheiro aplicado se perdeu. Essa perda fez os acionistas sofrerem, como se uma parte deles tivesse sido arrancada.
No âmbito mundial, isso se repercutiu em todos os países, mostrando que tudo está interligado na ordem que preside a existência física. Por sinal, este sentimento de separatividade tem sido um dos grandes equívocos das nações e governos, conforme vem demonstrando a crise financeira mundial e também os desacertos de ordem ecológica que tanto têm assolado o planeta, pondo em risco o equilíbrio da natureza.
Portanto, a Segunda Nobre Verdade nos indica que para eliminarmos o sofrimento, é preciso abrir mão do desejo. E como fazer isso?
Antes de tudo, é preciso cultivar a compreensão correta acerca do que são os desejos e os estados mentais que eles produzem. Sempre que surge um desejo, a reação habitual do ego é de negação ou indulgência. Isso está de tal forma, arraigado no psiquismo humano, que o indivíduo é levado de roldão pela situação, e não consegue perceber no bojo dos estados mentais provocados pelo desejo a fala do Buda dizendo: “Abra mão!
Desejo: "Vou aplicar na bolsa de valores". Estados mentais associados: “Se ganhar comprarei aquele carro importado que há tanto tempo desejo”. “E se eu perder? Não... Não quero nem pensar nisso... Isso não vai acontecer comigo... Conheço profundamente o mercado de ações, e tenho certeza de que tudo vai dar certo...Além do mais, não se consigo mais viver sem aquele carrão..."
Quando surge um desejo, é assim que age o ego, negando ou sendo indulgente com a situação. Assim, abrir mão não significa um eufemismo que tem por objetivo reprimir o desejo. Aliás, reprimir desejos não é um bom caminho para acabar com eles, pois o simples pensamento ou atitude de querer reprimi-los já é um desejo.
Portanto, abrir mão implica, antes de tudo, compreender, com aceitação calma e clara atenção, aquilo que está acontecendo. Um aspecto que deve ser considerado é o fato de que, embora o desejo (segunda verdade) possa ser origem ou causa do sofrimento (primeira verdade), isso não significa absolutamente que essas duas verdades sejam coisas separadas. Assim como o cultivo do desejo em nossas vidas cristaliza o sofrimento, e faz surgir a dor, da mesma forma, a atenta e correta observação e compreensão desse movimento causal (desejo → sofrimento) nos faz abrir mão espontaneamente do desejo, na medida em que ele se extingue por si só.
Dessa maneira, abrir mão de um desejo não é rejeitá-lo ou tentar negá-lo por meio do bloqueio dos pensamentos ou das emoções. Ao contrário, é permitir que ele seja o que de fato é: - um estado mental contingente, transitório, efêmero, que se extinguirá da mesma forma que surgiu. Ao invés de tentarmos nos livrar dos desejos à força é importante notarmos que é da natureza do desejo perder sua intensidade até extinguir-se, quando é atentamente observado. Isso somente ocorre quando observamos as coisas de fato como elas são. Para isso é fundamental vivermos com nossa atenção voltada para o agora, não somente ao longo do zazen (meditação zen), mas durante todo o dia.
É por isso que sabedorias orientais como o Budismo, o Taoísmo e o Hinduísmo enfatizam tanto a importância de estarmos plenamente focados no momento presente. No budismo zen, Shikantaza (estar presente, simplesmente ser) se pratica no agora, e não nas lembranças do passado (que já foi presente) ou na expectativa ou ansiedade do futuro (que será presente). Viver a plenitude do momento presente é o mesmo que dizer que o Observador, a Testemunha de tudo (a Natureza búdica) ao viver o agora, desfaz a ilusão do ego que necessita de um início, meio e fim para existir. O ego se alimenta da memória e da ansiedade ou expectativa pelo futuro. Quando vivemos o agora, interrompemos o fluxo do vir a ser, e o ego se enfraquece. A experiência do agora nos permite passar a ver as coisas sem a interferência do pano de fundo da memória e da expectativa pelo amanhã, ou seja, nos dá condições de viver no domínio atemporal do Ser.
No fundo, quando no identificamos com o desejo, (quero isso, não quero aquilo), estamos agarrando com mais força a separatividade, pois reforçamos como verdadeira a crença ilusória de que existe algo fora de nós. Ao agirmos assim, surge, de forma inevitável, o medo da perda, que acaba intensificando a resistência oposta pelo movimento natural da vida àqueles que lhe são contrários. Isso ocorre por que o fluxo natural da existência, essência da nossa própria natureza búdica, não coaduna com a ilusão do ego, e age no sentido de restabelecer a harmonia do cosmos. Esse o sentido mais profundo do carma.
Deduz-se daí que a experiência do momento presente, transformando a vida num continuum, onde um agora se sucede ao outro, sem interferências do passado e do futuro, estados mentais criados pelo ego, também nos ensina a viver em consonância com o fluxo natural da vida, evitando as resistências e reações iguais e contrárias que o universo exerce naqueles que contrariam sua harmonia, o que significa, em última instância, libertar-se dos processos cármicos. Os chineses com o Wuwei (ação por meio da não-ação) e os hindus com os princípios da Karma Yoga, já haviam percebido o poder libertador existente no ato de apenas fluirmos com a vida, sem deixarmos que o ego ofereça resistências ao seu influxo.
Se não exercitarmos essa compreensão o desejo continuará seu caminho, de um simples estado mental até se tornar uma compulsão. Assim, se o passo inicial do abrir mão é termos a reta compreensão acerca do desejo, seu próximo desafio está ligado ao reto agir, que implica na tomada de atitude, na decisão firme de observarmos atentamente o desejo, de forma a evitar que as reações habituais do ego na rotina diária, turvem nossa percepção, e o consolidem em nossa mente.
Portanto, por meio da compreensão da segunda nobre verdade do budismo, pode-se inferir que a observação atenta do desejo, no instante em que ele surge, permite-nos enxergar claramente a natureza passageira, duvidosa e contingente da realidade tridimensional em que estagiamos. O desejo sobrevive apenas na dimensão temporal, e seu nascimento presume uma ação do indivíduo, que busca na memória (passado) algum material de comparação com determinada situação por ele experienciada no agora. Se a posse do objeto de comparação indicar ao ego a possibilidade de maior segurança no vir a ser (futuro), surge imediatamente o impulso de conquistar tal objeto.
No fundo todo desejo visa dar segurança ao ego, que sabe da sua transitoriedade, da sua impermanência, e por isso mesmo quer, por meio da prática de sempre querer mais, garantir seu controle em nossas vidas ao longo de uma linha de tempo, que para o ego é real. A reencarnação na dimensão física parece ser exatamente essa linha de tempo, na qual o ego se manifesta, e cria os estados mentais de início, meio e fim; nascimento, vida e morte; passado, presente e futuro. A iluminação, isto é, a percepção do Ser acerca da sua própria perfeição é a via de libertação para a ilusão temporal da reencarnação. Iluminado, o ser passa a viver na dimensão atemporal da essência divina, onde tudo é uno; onde, nos disse Jesus, Ele e o Pai são um.
Jesus também já nos alertava sobre a importância do agora, quando disse: “Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã se preocupará consigo mesmo” (Mt. 6,34). Paulo de Tarso também dizia: - “Aprendi a contentar-me com o que tenho” (Filipenses, 4:11). Esses preciosos ensinamentos cristãos, quando analisados no mundo atual, onde a obtenção de coisas materiais e a previdência quanto ao futuro são interpretadas como grandes virtudes do homem fadado ao sucesso, podem parecer orientações estranhas e inadequadas. No entanto, essas palavras escondem a chave para compreensão perfeita acerca da segunda nobre verdade, cuja prática pode levar o homem a abrir mão dos desejos, e fazer cessar o sofrimento (terceira nobre verdade).
Exercitar a plenitude do agora e ao mesmo tempo compreender que já temos tudo de que necessitamos, são insights preciosos para extinguirmos os desejos. Aquele que vive em plena liberdade, focado no momento presente, retira o dharma dos livros e cânones budistas, e o coloca em sua prática diária.
Se quisermos compreender a terceira nobre verdade (a cessação do sofrimento) e atingirmos a dimensão atemporal do Ser precisamos, de fato, aprender, em nossa rotina diária, a abrir mão dos desejos, ou seja, a cultivarmos a reta compreensão de que eles são apenas uma espessa neblina criada pelo ego, que logo se esvai sob o influxo do sol da natureza búdica, que habita em cada um de nós.
* Budismo: Uma introdução Concisa - SMITH, Houston, NOVAK, Philip
Budismo sem crenças: A consciência do despertar - BATCHELOR, Stephen
domingo, 24 de maio de 2009
As quatro nobres verdades e a crise financeira mundial
Assim como ele, milhões de pessoas no mundo inteiro sofrem os efeitos dessa “quebradeira” geral de instituições financeiras que se especializaram em ganhar com especulações e acabaram tornando-se vítimas de sua própria armadilha. Essa instabilidade geral nos mercados financeiros é a expressão daquilo que Zygmunt Bauman, sociólogo polonês radicado na Inglaterra, chama de Modernidade Líquida.
A liquidez que domina a vida moderna expressa a mais absoluta instabilidade que rege o mundo das formas físicas, onde tudo é transitório, efêmero, fugaz e impermanente, incluindo-se nesse rol, nos dias atuais, até mesmo as relações humanas. No caso da desvalorização de ações, organizações tidas como sólidas e duradouras desmancham-se da noite para o dia, tirando o sono de milhares de acionistas. O moderno computador de hoje torna-se ultrapassado daqui a poucos meses. O relacionamento que se iniciou, muitas vezes baseado nos atributos da beleza física, termina com o passar do tempo em razão do envelhecimento do corpo. Em um mesmo ano as montadoras lançam mais de um modelo do mesmo automóvel, frustrando os consumidores que adquirem um carro novo no início do ano. Troca-se de namorado(a), esposo(a) ou parceiro(a) como se troca de roupa, de acordo com a conveniência da situação ou em decorrência da perda do encanto do primeiro encontro.
O fenômeno é tão marcante e de tal forma seduz a personalidade humana, que provoca a exacerbação do consumismo, a níveis nunca antes vistos. Ninguém quer ficar fora da moda, do que é novo, mesmo que para isso tenha de trocar de carro duas vezes no mesmo ano, e continuar morando de aluguel.
O fato é que essa impermanência, habilmente urdida pelo ego nas tessituras da mente, e por isso mesmo estimulada pela ambição dos que detêm o poder no mundo, acaba gerando no ser humano um desejo incontrolável de sempre querer mais.
É assim, que a mente-ego funciona. Atrás de um desejo saciado, surge sempre um novo desejo, pronto para manter acesa a chama da insatisfação humana. E ao sabor das ondas desse feroz oceano de desejos, o homem sofre ao viver uma vida limitada, imposta pela tirania da ilusão provocada pelo ego. Em decorrência de tudo isso, abate-se sobre ele o efeito avassalador do sofrimento, da angústia, da depressão, da falta de sentido para a vida.
Existirá uma alternativa para esse estado de coisas? Estaremos condenados ao sofrimento ou existe uma possibilidade de sermos felizes, de fato?
Ao que parece sim. O Poder Criativo do Cosmos, sempre atento às necessidades humanas, de séculos em séculos, permite o surgimento na Terra de seres iluminados, que à maneira de estrelas-guia, brilham no céu da escura noite das vicissitudes humanas, indicando o rumo para a felicidade.
Um desses seres, o Senhor Buda, há mais de 2.500 anos atrás, na Índia antiga, para regozijo da esperança, apontou-nos um caminho de libertação do sofrimento provocado pela impermanência que permeia o mundo das formas.
Ele abordou a questão ensinando-nos quatro nobres passos ou verdades, cuja compreensão são imprescindíveis para quem deseja trilhar o caminho para libertação da dor. O primeiro deles é reconhecer que o sofrimento existe. Que significa isso? Antes, cabe aqui uma pergunta de ordem ontológica: Quem realmente sofre? O ego ou o Ser? Quem é ao mesmo tempo causador e vítima desse sofrimento?
Buda percebeu que a vida, da forma como a experimentamos, ou seja, da maneira que a vivenciamos por meio da mente-ego, é frustrante, insegura, instável, e por isso mesmo gera sofrimento. Quem pode dizer com honestidade quantas vezes ao dia se sente verdadeiramente feliz, independentemente de qualquer coisa, pessoa, fato, palavra, pensamento ou ação? Para Buda, o nível de existência que a maioria de nós vive é superficial, e nele dukkha reina soberanamente.
Dukkha é um termo normalmente traduzido como sofrimento, dor, mas quando era utilizado na língua Páli (língua falada à época do Buda) tinha também “o significado de rodas cujos eixos estavam fora dos centros” [1]. Assim, o homem atual vive uma vida deslocada, fora de centro. Existe algo de errado com a roda do nosso modus vivendis que está descentrado por ter seu eixo focado na impermanência, ou seja, giramos a vida em torno de um pivô que não é real, e isso provoca fricção excessiva (conflitos internos), bloqueando o movimento (criatividade) da existência, o que acaba por gerar o calor da dor.
Buda também identifica os seis momentos da vida em que esse deslocamento da existência se evidencia: 1- o trauma do nascimento que se torna a semente da ansiedade que brotará ao longo da existência, nos instantes em que nos sentimos ameaçados e somos submetidos a dolorosos sentimentos e descargas de excitação e sensações físicas; 2- a patologia da doença que desvela a realidade contundente da impermanência do corpo humano; 3 – a morbidez da decrepitude que gera todos os medos presentes nos anos finais da vida (medo da dependência financeira, medo de não ser amado, medo da doença, da dor, medo da decrepitude física e de se tornar dependente dos outros, medo de avaliarmos nossa vida como um fracasso); 4 – a fobia da morte propiciando o surgimento no homem de um quase terror, que acaba maculando a vida sadia; 5 – estar preso àquilo de que não se gosta, acarretando um martírio para o homem até o final da sua vida física (uma doença incurável, um defeito físico ou de caráter, etc.); 6 – estar separado daquilo que se ama.
Todas essas situações se configuram na Matrix que aprisiona o homem com os grilhões do sofrimento, e faz a dor tomar consistência quase palpável e real diante do equivocado olhar ilusório com que encaramos a vida. Assim, o primeiro nobre passo no caminho da libertação, nos mostra duas dimensões profundas do sofrimento.
Na primeira, compreendermos que por mais que se consiga o objeto do desejo, a felicidade ou prazer da conquista não perdura por muito tempo. Todo prazer acaba, deixando na boca aberta da rotina diária a sede por sua renovação. Assim, na dimensão da Matrix (mente-ego) sempre que o homem buscar nas coisas exteriores uma satisfação duradoura a impermanência vai assegurar a presença de dukkha, e com ela o sofrimento, mostrando-nos que estamos deslocados, fora do centro da harmonia universal.
A segunda dimensão revela que não apenas o mundo das aparências ou da experiência diária é impermanente, mas também nós, enquanto mentes-ego que estagiam nesse mundo, também somos. Esta é uma questão central na compreensão do caminho que liberta o homem do sofrimento. Buda nos mostra que aquilo que normalmente chamamos de nosso “eu”, que Martin Heidegger, filósofo existencialista alemão, chamava de ser-no-mundo, e que aqui denominamos mente-ego, em verdade não passa de um ente em constante mutação, impermanente, composto de cinco elementos que ele chamou de skandhas: - corpo, sensações, percepções, tendências de disposição e consciência. A única saída é desenvolvermos a compreensão correta de quem realmente somos: essências divinas eternas, unas com o Poder Criativo, e portanto imunes à impermanência do mundo das formas.
Sabemos que a mente-ego, para existir, precisa se identificar com algo, e, portanto, em seu esforço pela identificação com os cinco skandhas que são impermanentes, efêmeros, transitórios, acaba não se realizando, e daí nasce a busca desenfreada pela satisfação dos desejos, origem de todo o sofrimento. Não percebemos que o mundo das formas é vazio, ou seja, não possui existência por si mesmo, sendo totalmente dependente da percepção do ego.
Para Buda esses cinco componentes de apego que compõem a mente-ego também são dukkha, e o homem, ao se identificar e acreditar na existência real desses skandhas, permite que sua existência seja levada de roldão por um redemoinho de automatismos e condicionamentos, que poucos compreendem. Até que cesse a ignorância acerca de quem realmente somos, e descubramos o Ser interior, ficaremos privados da verdadeira alegria de viver.
Esse o problema dos investimentos nas bolsas de valores que trazem ciclos de expectativas e frustrações a milhões de pessoas no mundo inteiro. A tal crise financeira que origina o sobe e desce dessas bolsas nada mais é do que a mostra inequívoca da existência da impermanência. O problema não está nas condições estruturais de bancos e organizações financeiras, como nos querem fazer acreditar os economistas, mas sim na crença de que essas estruturas, inclusive o próprio mercado financeiro, são reais, sólidas. Até por que, partindo do pressuposto de que todo esse sistema mundial foi arquitetado pelo homem, pode-se perguntar: - Como pode o ego, por meio dos seus cinco agregados impermanentes (corpo, sensações, percepções, tendências de disposição e consciência), ser capaz de criar algo permanente, duradouro?
Neste ponto, surgem outras perguntas importantes: - Afinal de contas, quem é o investidor? Quem fica eufórico com o ganho? Quem fica frustrado, infeliz, deprimido com a perda? A saída é deixar de aplicar na bolsa, ou compreender de fato quem somos?
Compreender a diferença entre ego e Ser, e o fato de que somos algo permanente, que transcende os limites do ego pensante e do binomio tempo-espaço, que é imune às variações de humor da vida, tais como alegria e tristeza, é fundamental para recuperarmos o equilíbrio e a harmonia de viver.
E para isso, Buda nos diz que precisamos ir ao cerne do problema, ou seja, conhecer a causa dessa ferida de nascença, chamada dukkha, que tanto atormenta o ser humano, deslocando sua vida e roubando-lhe a felicidade. Este é o propósito do segundo nobre passo do caminho, que veremos no próximo post.
[1] SMITH, Huston; NOVAK, Philip. Budismo – Uma Introdução Concisa. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix LTDA, 2ª edição, 2007, p.42.