O caminho perfeito não conhece dificuldades ,
Mas se recusa a ter preferências;
Apenas quando é libertado do ódio e do amor
É que se revela totalmente, e sem disfarce.
Uma diferença de um décimo de centímetros,
E o céu e a terra são separados.
Se você deseja vê-lo diante dos seus olhos
Não tenha pensamentos fixos nem contra nem a favor.
Instigar aquilo de que você gosta contra aquilo de que você não gosta:
Essa é a dança da mente.
O Caminho é perfeito como a amplidão do espaço,
Sem nada a querer, sem nada supérfluo.
É devido às escolhas que faz
Que a sua Essência se perde de vista.
O Um não é nada além do Todo, o Todo nada além do Um.
Tome seu lugar e o resto se seguirá por si só.
Falei, mas foi em vão, pois o que podem dizer as palavras
Sobre as coisas que não têm ontem, amanhã ou hoje?
Seng Ts’an
(Extraído do livro “Budismo: Uma introdução Concisa – Huston Smith e Philip Novak)
Vivemos exatamente de forma contrária à última estrofe do poema acima. Queremos compreender tudo pelo intelecto, e para isso a mente-ego necessita de definições. No entanto, para vivenciarmos a resposta da pergunta que move a humanidade “Quem sou eu?” precisamos buscar o vazio.
A natureza da mente é o condicionamento. Exibimos por trás de cada atitude, palavra ou pensamento uma marca mental, que dá o tom ou as cores da nossa interpretação de mundo. Uma mesma situação pode ser compreendida de forma diferente por várias pessoas, de acordo com o influxo do pano de fundo ou dos condicionamentos que trazem em suas mentes.
Como exemplo, observe com atenção a figura abaixo:
O que você vê na imagem acima: Um hexágono? Um cubo com a face superior olhando-se de cima para baixo? Um cubo com a face inferior olhando-se de baixo para cima?
Pois, é... Note que mesmo havendo três possibilidades, ou seja, mesmo que consigamos visualizar as três figuras, existe sempre uma delas que teima em permanecer em nossa tela mental, condicionando nossa percepção, e dificultando a identificação das outras duas.
Essa é uma ação típica da mente-ego que interpreta as situações no mundo sensível de acordo com sua conveniência, condicionando nossas vidas sem que, na maioria das vezes, tenhamos consciência disso. Esse viés utilizado pelo ego para interpretar o mundo de acordo com suas concepções tem origem na própria estrutura egóica, herdada das memórias acumuladas (pensamentos e emoções) por meio das experiências do ser na dimensão do sensível.
Como então colocarmos os pés no Caminho Perfeito de que nos fala o poema do Mestre Seng Ts’na, caminho este totalmente livre dos condicionamentos?
O segredo é percebermos que o vazio está presente em todas as coisas. Não aquela idéia de vazio deduzida pelo intelecto, que nada mais é do que a negação de algo ou da própria existência.
A vacuidade aqui pretendida não pode ser definida pela mente-ego, pois se constitui na própria natureza incondicionada do Ser, ou seja, a natureza búdica, livre de marcas mentais, por meio da qual, percebemos as coisas como elas são.
Este caminho perfeito, de que nos fala Seng Ts’na, é o momento presente, o agora. Estar presente significa a própria conexão entre o Ser e o mundo sensível, isto é, entre a Testemunha de tudo e o Tudo. A simples consciência desse fato é capaz de transformar a Testemunha e o Tudo em um só.
Em razão da sua natureza condicionada, a mente fraciona a realidade exterior em sujeito e objeto, dando-nos a falsa impressão de que existimos separados do mundo sensível. E neste contexto, a linha temporal na qual se baseia a existência física, reforça esse processo de distinção, na medida em que as recordações da memória e as imagens criadas pela imaginação que projeta o amanhã são instrumentos desse condicionamento, utilizados pela mente para criar a ilusão de que objetos e pessoas estão fora de nós.
Portanto, viver a plenitude do agora é estar liberto da memória (passado) e do vir-a-ser (futuro). Quando vivemos nossa vida plenamente ancorados no instante presente, nos libertamos de forma consciente de dois tipos de condicionamentos que bloqueiam nossa percepção acerca das coisas como elas realmente são: 1) a repetição de padrões mentais que se estabelecem automaticamente em razão de comparações quase instantâneas realizadas pela mente-ego entre aquilo que experimentamos no agora e recordações de situações semelhantes vivenciadas no passado; 2) sobreposição de imagens projetadas para o futuro sobre nossa compreensão acerca da situação presente, geradas pela ansiedade da mente-ego, que não gosta de sentir insegurança quanto ao porvir, e por isso utiliza-se da imaginação para garantir a satisfação dos seus desejos.
Assim, estar presente é apenas ser, sem julgamentos ou comparações, sem certo ou errado, nem bonito, nem feio, nem alto, nem baixo. É na plenitude do agora que todos os opostos, toda dicotomia se complementa, e podemos então perceber a unidade.
Essa prática no Zen se chama Shikantaza, ou seja, simplesmente estar presente, simplesmente ser, simplesmente fluir na eternidade do agora.
Os condicionamentos e as marcas mentais têm sua origem na memória e na ansiedade do vir-a-ser. Por isso, viver cada instante com plena atenção é ser livre, pois o momento presente em si, sem as limitações temporais do passado e do futuro, é vazio de marcas mentais e condicionamentos. Este é o sentido verdadeiro de vacuidade e também de liberdade.
Logo, se estou plenamente focado no agora, sem deixar que a mente vagueie pelos labirintos ilusórios das recordações e das previsões, minha percepção acerca de determinada situação não difere mais da percepção do outro, pois não há mais a interposição do viés do ego entre nós. O momento presente liberta da separatividade.
No agora, não me encontro mais separado do outro, pois não existe mais a minha compreensão e a compreensão do outro. Sem o pano de fundo da mente-ego, as coisas são como elas são, e, portanto, o mundo sensível não depende mais das opiniões do ego para ser compreendido.
Por isso, aquele que vive no instante presente torna-se imune à opinião alheia, que não mais o atinge, nem o instiga, nem tampouco o aborrece. Para ele, já não há mais sentido em querer convencer ou impor ao outro a sua opinião, pois sua antiga compreensão das coisas, a compreensão da mente-ego, da qual ele extraía opiniões intelectuais e separatistas sobre o mundo sensível, já não mais existe.
E se opiniões e definições intelectivas já não são mais importantes, então não existem mais diferenças entre ele e o outro. Surge desse fato um sentimento natural de aceitação do outro, fruto da compaixão, aqui compreendida como a percepção que nasce da compreensão de que temos a mesma origem, o mesmo gérmen, a mesma semente.
Portanto, viver a plenitude do agora faz com que resgatemos nosso sentimento mais profundo de humanidade, respeitando e acima de tudo reconhecendo o outro.
Estar plenamente imerso no presente é, pois, o caminho perfeito. Trilhar esse caminho é romper os grilhões da ilusão da separatividade criada pelos condicionamentos da mente-ego. E viver sem condicionamentos é realizar a liberdade de ser uno com tudo e todos.